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Lua Azul - blog de lua azul

Viajando pelo mundo dos livros... "O Aprendiz do Mago" de Joseph Delaney - Capítulo 7

por lua azul

Cerca de uma semaninha depois de por aqui vos ter deixado na íntegra o sexto capítulo da primeira obra literária que decidi partilhar convosco através deste meu pequeno espacinho aqui no lerparaver, eis que finalmente consegui encontrar um bocadinho para poder deixar-vos o 7.º com uma espécie de resumo daquilo que foi o primeiro mês de aprendizagens que o nosso amigo Thom vivenciou junto do mago. Espero que também isto possa ser do vosso agrado, eu como sempre voltarei a publicar por aqui mais coisinhas referentes a este livro tão rapidamente quanto possível.

CAPÍTULO 7
ALGUÉM TEM QUE FAZER

Depois daquilo, a minha vida entrou numa rotina atarefada. O Mago ensinava-me depressa
e obrigava-me a escrever até ficar com o pulso a doer e os olhos a arder.
Uma tarde, levou-me até ao fundo da aldeia, para lá da última cabana de pedra, onde havia
um pequeno círculo de salgueiros que, no Condado, têm o nome de “vimes”. Era um lugar triste
e havia ali uma corda pendendo de um ramo. Olhei para cima e vi um sino grande de latão.
— Quando alguém precisa de ajuda — disse o Mago —, não vem até em casa. Ninguém o
faz, a menos que tenha sido convidado. Sou muito rigoroso nisso. Descem aqui e tocam aquele
sino. Depois nós vamos ter com eles.
O problema era que, mesmo depois de terem passado semanas, ninguém viera tocar o sino,
e só precisei de ir para lá do jardim ocidental quando houve necessidade de ir buscar as provisões
semanais à aldeia. Sentia-me também sozinho, com saudades da minha família, por isso foi boa
idéia o Mago manter-me ocupado — isso queria dizer que não tinha tempo para me pôr a pensar
no assunto. Quando ia me deitar estava tão cansado que adormecia mal a minha cabeça pousava
na almofada.
As lições eram a parte mais interessante de cada dia, mas não aprendi muito sobre imagens
fantasmagóricas, fantasmas e bruxas. O Mago explicou-me que, no primeiro ano do aprendizado,
os temas principais eram os demônios, juntamente com assuntos como a botânica, o que
implicava aprender tudo sobre plantas, algumas das quais eram realmente úteis em mezinhas ou
podiam ser comidas se não se encontrasse outro alimento. Mas as minhas lições não se limitavam
a tomar notas. Parte do trabalho era tão duro e físico como o que eu fazia lá na nossa fazenda.
Começou numa manhã quente e ensolarada, em que o Mago me mandou pôr de lado o
livro de notas e segui-lo até ao jardim meridional. Entregou-me duas coisas para levar: uma pá e
uma vara de medição comprida.
— Os demônios livres deslocam-se através de linhas — explicou. — Mas por vezes algo
corre mal. Pode ser conseqüência de uma tempestade ou talvez de um tremor de terra. Nunca se
registrou um tremor de terra a sério no Condado desde que há memória, mas isso não importa,
porque as linhas estão todas interligadas e algo que acontece numa, mesmo a milhares de
quilômetros, pode afetar todas as outras. Então, os demônios ficam presos no mesmo lugar
durante anos e chamamos-lhes “aprisionados naturalmente”. Muitas vezes não conseguem se
mover mais de uma dúzia de passos em qualquer sentido e causam poucos problemas. A menos
que se aproxime demais de um deles. Por vezes, no entanto, podem ficar presos em lugares
estranhos, perto de uma casa ou mesmo dentro dela. Então, talvez precise de mudar dali o
demônio e aprisioná-lo artificialmente noutro lugar.
— O que é uma linha? — inquiri.
— Não existe um consenso, rapaz — explicou-me ele. — Há quem pense que são apenas
caminhos antigos que atravessam a terra, os caminhos que os nossos antepassados percorreram
em tempos antigos, quando os homens eram homens de verdade e a escuridão conhecia o seu
devido lugar. Havia mais saúde, vivia-se mais tempo e toda a gente estava feliz e contente.
— O que aconteceu?
— A camada de gelo desceu do norte e a terra ficou gelada durante milhares de anos —
esclareceu o Mago. — Foi tão difícil sobreviver que os homens se esqueceram de tudo o que

haviam aprendido. O conhecimento antigo não era relevante. Tudo o que importava era
manterem-se quentes e terem comida. Quando o gelo finalmente recuou, os sobreviventes eram
caçadores vestidos com peles de animais. Haviam esquecido como se obtinham boas colheitas e
criavam animais. As trevas eram soberanas.
“Bem, agora está melhor, apesar de ainda termos um longo caminho pela frente. Tudo o
que resta daqueles tempos são as linhas, mas, na verdade, são mais do que meros caminhos. As
linhas são verdadeiras vias de poder, bem nas profundezas da Terra. Estradas secretas invisíveis
que os demônios livres podem usar para se deslocarem a grande velocidade. São estes demônios
livres que causam a maior parte dos problemas. Quando se instalam num novo local, com
freqüência não são bem-vindos. E isso deixa-os irados. Pregam peças — às vezes perigosas — e
isso significa trabalho para nós. Então, é preciso aprisioná-los artificialmente num poço. Como
aquele que vai abrir agora...
“Este é um bom local — disse, apontando para o solo perto de um enorme carvalho
antigo. — Acho que deve haver espaço suficiente entre as raízes.
O Mago entregou-me a vara de medição para que eu pudesse abrir o poço exatamente com
um metro e oitenta de comprido, um metro e oitenta de profundidade e noventa centímetros de
largura. Mesmo à sombra, fazia demasiado calor para cavar e levei horas e horas até conseguir
acertar porque o Mago era um perfeccionista.
Depois de abrir o poço, tive de preparar uma mistura malcheirosa de sal, limalhas de ferro
e um tipo especial de cola feita com ossos.
— O sal pode queimar um demônio — informou o Mago. — Por outro lado, o ferro faz a
ligação ao solo: tal como um raio dá com o caminho até à terra e perde a sua força, o ferro pode
por vezes fazer com que as coisas que habitam o escuro percam a força e a substância. Pode pôr
fim à malvadez de demônios incômodos. Usados juntos, o sal e o ferro formam uma barreira que
um demônio não consegue atravessar. Na realidade, o sal e o ferro podem ser usados em diversas
situações.
Depois de agitar a mistura num balde grande de metal, servi-me de uma trincha para
revestir o interior do poço. Era como se pintasse, mas mais trabalhoso, e a camada tinha de ficar
perfeita para evitar que até o demônio mais habilidoso conseguisse escapulir.
— Faça um trabalho minucioso, rapaz — disse-me o Mago. — Um demônio é capaz de
fugir por um buraco do tamanho de uma cabeça de alfinete.
Claro que, assim que o poço ficou concluído a contento do Mago, tive de tapá-lo e
recomeçar. Obrigou-me a abrir dois poços por semana para treinar, o que era um trabalho duro e
fatigante e me ocupava grande parte do tempo. Metia também um certo medo porque eu estava a
trabalhar perto de poços que continham demônios verdadeiros e, mesmo à luz do dia, era um
lugar medonho. No entanto, reparei que o Mago nunca se afastava muito e parecia sempre atento
e alerta, dizendo-me que nunca se devia correr riscos com demônios, mesmo quando estavam
presos.
O Mago disse também que eu ia precisar de conhecer cada palmo do Condado — todas as
suas vilas e aldeias e o caminho mais rápido entre quaisquer dois pontos. Só que, apesar de o
Mago dizer que possuía muitos mapas lá em cima na biblioteca, parecia que eu tinha sempre de
seguir o caminho mais difícil, e então começou por me mandar desenhar o meu próprio mapa.
No meio situava-se a casa dele e os jardins e foi preciso incluir a aldeia e a extensão
rochosa mais próxima. A idéia era ele ir ficando gradualmente maior, de modo a incluir cada vez
mais a região em redor. Mas o desenho não era o meu forte e, como referi, o Mago era um
perfeccionista, pelo que o mapa levou muito tempo a crescer. Só então ele começou a me mostrar

os seus próprios mapas, mas obrigava-me depois a passar mais tempo a dobrá-los
cuidadosamente do que propriamente a estudá-los.
Comecei também a ter um diário. Para o efeito, o Mago entregou-me outro livro de notas,
dizendo-me pela enésima vez que eu precisava de registrar o passado para que pudesse aprender
com ele. Não escrevia nele todos os dias e às vezes doía-me demais o pulso de tanto rabiscar à
pressa no outro livro de notas, enquanto tentava acompanhar o que o Mago dizia.
Depois, uma manhã, ao desjejum, estava eu com o Mago apenas há um mês, ele perguntou-
me: — Qual a sua opinião até aqui, rapaz?
Estaria a referir-se ao desjejum? Talvez houvesse um segundo prato para compensar o
toucinho fumado, que ficara um pouco esturricado naquela manhã. Limitei-me a encolher os
ombros. Não queria ofender o demônio, que estaria provavelmente à escuta.
— Bem, é um trabalho difícil e não o culparia se decidisse desistir neste momento — disse
ele. — Decorrido o primeiro mês, dou sempre a cada novo aprendiz a oportunidade de ir a casa e
pensar a sério se quer ou não continuar. Gostaria de fazer o mesmo?
Esforcei-me por não me mostrar demasiado ansioso mas não consegui esconder o sorriso
que afluiu ao meu rosto. Só que, quanto mais eu sorria, mais triste o Mago parecia. Deu-me a
impressão de que ele queria que ficasse, mas eu estava ansioso por partir. A idéia de voltar a ver a
minha família e poder saborear os cozinhados da minha mãe parecia-me um sonho.
Numa hora, estava pronto para ir a casa.
— É um rapaz corajoso e de espírito vivo — disse-me ao portão. — Passou no seu mês à
experiência por isso pode dizer ao seu pai que, se quiser continuar, irei visitá-lo no Outono para
receber os meus dez guinéus. Possui os predicados de um bom aprendiz, mas é com você, rapaz.
Se não voltar, então saberei que decidiu o contrário. De outro modo, espero-o de volta dentro de
uma semana. Depois receberá cinco anos de preparação que te tornarão quase tão bom quanto
eu, no ofício.
Parti para casa, animado. Sabem, não quisera dizer nada ao Mago, mas no momento em
que ele me dera a oportunidade de ir a casa e possivelmente não voltar, eu decidira fazer
exatamente isso. Era um trabalho horrível. Pelo que o Mago me contara, para além da solidão, era
perigoso e aterrador. Ninguém se importava se sobrevivíamos ou morríamos. Só queriam que os
livrássemos do que quer que os atormentava, mas não pensavam nem por um segundo nas
implicações que isso poderia ter para nós.
O Mago mencionara-me que uma vez quase fora morto por um demônio. Mudara, num
abrir e fechar de olhos, de barulhento para arremessador de pedras e por pouco não lhe rachara a
cabeça com uma pedra do tamanho de um punho de ferreiro. Disse que nem sequer lhe tinham
pago ainda, mas contava receber o dinheiro na Primavera seguinte. Bem, a Primavera seguinte
ainda vinha muito longe, por isso de que servia? Quando parti rumo a casa, parecia-me que
estaria melhor a trabalhar na fazenda.
Mas foram quase dois dias de viagem e tive muito tempo para pensar durante o caminho.
Lembrei-me das vezes que me sentira enfadado na fazenda. Conseguiria realmente agüentar
trabalhar ali o resto da minha vida?
A seguir, comecei a pensar no que diria a minha mãe. Ela estava firmemente decidida a que
eu fosse o aprendiz do Mago e, se desistisse, decepcioná-la-ia muito. Portanto, a parte mais difícil
seria contar-lhe e observar a sua reação.
Ao anoitecer do meu primeiro dia de regresso a casa, consumira já todo o queijo que o
Mago me dera para a viagem. Assim, no dia seguinte só parei uma vez, para mergulhar os pés
num riacho, chegando a casa mesmo antes da ordenha.

Quando abri o portão do pátio, o meu pai dirigia-se para o estábulo. Ao ver-me, o seu
rosto iluminou-se num amplo sorriso. Ofereci-me para ajudá-lo na ordenha, a fim de podermos
conversar, mas ele mandou-me ir falar imediatamente com a minha mãe.
— Ela sentiu a sua falta. Será um deleite para a vista. Batendo-me nas costas, foi ordenhar
as vacas, mas eu ainda não dera meia dúzia de passos quando Jack saiu do celeiro e veio direito a
mim.
— O que o traz de volta tão depressa? — perguntou. Pareceu-me um pouco frio. Bem,
para ser sincero, ele estava mais gélido do que frio. O seu rosto apresentava-se contorcido, como
se tentasse carregar o cenho e sorrir ao mesmo tempo.
— O Mago mandou-me a casa por uns dias. Tenho de decidir se quero ou não continuar.
— E o que é que vai fazer?
— Vou conversar com a minha mãe sobre o assunto.
— Levará sem dúvida a água ao seu moinho, como sempre — disse Jack.
Nesta altura, Jack estava mesmo carrancudo e fiquei com a impressão de que acontecera
algo enquanto eu estivera fora. Por que outro motivo ficaria de repente tão antipático? Seria
porque não queria que eu voltasse para casa?
— E nem quero acreditar que levou a caixa de mechas do pai — acrescentou.
— Ele me deu — retorqui. — Quis que eu ficasse com ela.
— Ele ofereceu-a, mas isso não significava que tivesse de aceitá-la. O seu mal é só pensar
em si. Pense no pobre do pai. Ele adorava aquela caixa de mechas.
Não disse nada porque não estava interessado em criar uma discussão. Sabia que ele estava
errado. O pai quisera que eu ficasse com a caixa de mechas, tinha a certeza absoluta.
— Enquanto aqui estiver, poderei dar uma ajuda — disse, tentando mudar de assunto.
— Se quer realmente ganhar o seu sustento, então vá dar comida aos porcos! — gritou
enquanto se afastava. Era uma tarefa de que nenhum de nós gostava. Os porcos eram grandes,
peludos e malcheirosos e estavam sempre tão esfomeados que nunca era seguro virar-lhes as
costas.
Apesar do que Jack dissera, não deixei de me sentir satisfeito por estar em casa. Enquanto
atravessava o pátio, olhei para a casa. As rosas trepadeiras da minha mãe revestiam a maior parte
da parede das traseiras, e sempre se tinham dado bem ali, não obstante estarem viradas a norte.
Agora começavam a rebentar, mas em meados de Junho estariam cobertas de flores vermelhas.
A porta de trás encravava constantemente porque uma vez a casa fora atingida por um
raio. A porta incendiara-se e fora substituída, mas a ombreira continuava ligeiramente empenada
e eu tive de empurrá-la com bastante força. Valeu a pena, pois a primeira coisa que vi foi o rosto
sorridente da minha mãe.
Estava sentada na sua velha cadeira de balanço, no canto mais afastado da cozinha, um
local onde o sol poente não conseguia chegar. Se a luz fosse demasiado intensa, feria-lhe os olhos.
A minha mãe preferia o Inverno ao Verão e a noite ao dia.
Claro que ficou satisfeita de me ver, e a princípio tentei dizer-lhe o mais tarde possível que
viera para ficar. Assumi uma expressão corajosa e fingi estar feliz, mas ela não se deixou enganar.
Nunca lhe conseguia esconder nada.
— O que se passa? — perguntou-me.
Encolhi os ombros e procurei sorrir, provavelmente disfarçando os meus sentimentos
ainda pior do que o meu irmão.
— Fale — ordenou-me. — E inútil guardar tudo só para si.
Durante um grande bocado não respondi porque estava tentando encontrar uma maneira

de o expressar por palavras. O ritmo da cadeira de balanço da minha mãe abrandou
gradualmente, até acabar por cessar completamente. Aquilo não era bom sinal.
— Passei no meu mês à experiência e Mr. Gregory disse que tenho de decidir se continuo
ou não. Mas sinto-me sozinho, mãe — acabei por confessar. — É tão mau quanto esperava. Não
tenho amigos. Ninguém da minha idade com quem conversar. Gostaria de voltar a trabalhar aqui.
Podia ter continuado, referindo-lhe o quanto costumávamos ser felizes quando todos os
meus irmãos viviam ali. Não o fiz — sabia que ela também sentia saudades deles. Pensei que se
pudesse compadecer, mas estava muito enganado.
Seguiu-se uma longa pausa antes de a minha mãe falar e ouvi Ellie a varrer na divisão ao
lado, cantando baixinho enquanto trabalhava.
— Sozinho? — perguntou a minha mãe, a sua voz cheia de raiva em vez de compaixão. —
Como pode sentir-se sozinho? Tem a si próprio, não tem? Se alguma vez se perder, então é que
estará realmente sozinho. Entretanto, pare de se queixar. Já é quase um homem e um homem tem
de trabalhar. Desde que o mundo é mundo, os homens têm trabalhado naquilo de que não
gostam. Porque haveria de ser diferente no seu caso? É o sétimo filho de um sétimo filho, e este é
o trabalho que nasceu para fazer.
— Mas Mr. Gregory preparou outros aprendizes — saiu-me abruptamente. — Um deles
podia voltar e olhar pelo Condado. Porque tem de ser eu?
— Ele preparou muitos, mas pouquíssimos foram até ao fim — disse a minha mãe —, e
aqueles que o fizeram não lhe chegam nem aos calcanhares. Ou são imperfeitos ou fracos ou
covardes. Seguem um caminho desonroso, recebendo dinheiro a troco de muito pouco. Por isso
agora só resta você, filho. É a última oportunidade. A última esperança. Alguém tem de fazê-lo.
Alguém tem de enfrentar o escuro. E você é o único capaz disso.
A cadeira recomeçou a balançar, ganhando lentamente velocidade.
— Bem, fico contente por isto estar resolvido. Quer esperar pela ceia ou que te sirva assim
que ficar pronta?— perguntou a minha mãe.
— Não comi nada o dia inteiro, mãe. Nem sequer o desjejum.
— Bem, é coelho guisado. Deverá conseguir animar-te um pouco. Sentei-me à mesa da
cozinha, sentindo-me mais desanimado e triste do que nunca, enquanto a minha mãe se atarefava
em volta do fogão. O coelho guisado cheirava deliciosamente e começou a dar-me água na boca.
Não havia melhor cozinheira do que a minha mãe e valia a pena voltar para casa, nem que fosse
para uma única refeição.
Sorrindo, a minha mãe trouxe um grande prato fumegante de guisado e colocou-o diante
de mim.
— Vou preparar o seu quarto — disse. — Já que está aqui, pode perfeitamente ficar um
dia ou dois.
Murmurei os meus agradecimentos e não perdi tempo a começar. Assim que a mãe foi para
cima, Ellie entrou na cozinha.
— Que bom voltar a ver-te, Tom — disse ela, com um sorriso. Depois olhou para a minha
generosa pratada de comida. — Quer acompanhar com pão?
— Sim, por favor — respondi e Ellie cortou-me três fatias grossas com manteiga, antes de
se sentar à mesa defronte de mim. Terminei tudo sem parar uma só vez para respirar, limpando
finalmente o prato com a última fatia grande de pão acabado de cozer.
— Sente-se melhor, agora?
Anuí e tentei sorrir, mas sabia que não estava a resultar porque de repente Ellie mostrou-se
preocupada.

— Não pude deixar de ouvir o que disse à sua mãe — aludiu. — Estou certa de que não é
tão mau quanto isso. Só que o trabalho é novidade e estranho. Não tardará a acostumar-se. De
qualquer forma, não precisa voltar imediatamente. Após alguns dias em casa, se sentirá melhor. E
será sempre bem-vindo aqui, mesmo quando a fazenda pertencer a Jack.
— Não creio que Jack tenha ficado satisfeito de me ver.
— Ora essa, o que te leva a pensar semelhante coisa? — inquiriu Ellie.
— Ele não me pareceu muito amistoso, é tudo. Acho que não me quer aqui.
— Não se preocupe com o seu irmão grande e mau. Eu resolvo tudo com ele num
instante.
Sorri então amplamente, porque era verdade. Como dissera uma vez a minha mãe, Ellie
conseguia dar a volta a Jack com o dedo mindinho.
— O que mais o preocupa é isto — disse Ellie, passando a mão pela barriga. — A irmã da
minha mãe morreu do parto e a nossa família ainda hoje fala disso. Deixa Jack nervoso, mas eu
não estou nada preocupada porque não podia encontrar-me em melhor lugar, com a sua mãe a
cuidar de mim. — Fez uma pausa. — Mas há outra coisa. O seu novo ofício preocupa-o.
— Ele parecia bastante satisfeito antes de eu ir embora — respondi.
— Estava a fazê-lo por você, porque é irmão dele e se preocupa com você. Mas o trabalho
de Mago assusta as pessoas. Deixa-as inquietas. Acho que se tivesse ido logo embora,
provavelmente não haveria problema. Mas Jack afirmou que no dia em que se foi, subiu a colina
até à mata e desde então os cães têm andado agitados. Agora nem sequer querem ir à pastagem
norte.
“Jack pensa que você perturbou algo lá em cima. Acho que se resume tudo a isto —
prosseguiu Ellie, batendo delicadamente na barriga. — Ele só está querendo proteger-nos, é
tudo. A pensar na família dele. Mas não se preocupe. Tudo irá se resolver.
Acabei por ficar três dias, tentando mostrar-me corajoso, mas depois senti que estava na
hora de ir. A minha mãe foi a última pessoa que vi antes de partir. Estávamos os dois na cozinha
e ela apertou-me o braço e disse-me que se orgulhava de mim.
— Você é mais do que sete vezes sete — afirmou, sorrindo-me calorosamente. —
Também é meu filho e possui a força para fazer o que tem de ser feito.
Não pude deixar de anuir porque queria que ela ficasse feliz, mas o sorriso desapareceu do
meu rosto assim que deixei o pátio. Arrastei-me penosamente até casa do Mago com o coração
mesmo aos pés, sentindo-me magoado e desiludido por a minha mãe não me querer de volta.
Choveu o tempo todo até Chipenden e quando cheguei estava gelado, molhado e infeliz.
Mas quando me aproximei do portão, para minha surpresa, a tranca levantou-se sozinha e o
portão abriu-se sem que eu lhe tocasse. Foi uma espécie de boas-vindas, um encorajamento a
entrar, algo que eu julgara estar unicamente reservado ao Mago. Acho que aquilo me deveria ter
deixado satisfeito, mas não. Causou-me arrepios.
Bati à porta três vezes, antes de perceber que a chave estava na fechadura. Como não
respondessem às minhas pancadas, rodei a chave e depois abri a porta.
Verifiquei todas as divisões aqui em baixo, exceto uma. Depois chamei das escadas. Não
obtive resposta, de modo que arrisquei entrar na cozinha. O fogo ardia na lareira e a mesa fora
posta para uma pessoa. No seu centro estava um enorme tacho de guisado fumegante. Tinha
tanta fome que me servi e quase limpara tudo quando vi o bilhete debaixo do saleiro.
Tive de ir a Pendle. Problema com bruxa, por isso vou estar ausente algum tempo. Instala-se à vontade
mas não se esqueça de ir buscar as provisões para esta semana. Como sempre, o açougueiro tem o meu saco, por
isso passe lá primeiro.

Pendle era uma enorme extensão rochosa — quase uma montanha, na realidade — na
região leste do Condado. Toda a zona estava infestada de bruxas e era um local arriscado onde ir,
especialmente sozinho. Recordou-me novamente quão perigoso podia ser o trabalho do Mago.
Mas, ao mesmo tempo, não pude deixar de ficar um pouco aborrecido. Todo aquele tempo
à espera de que acontecesse algo, depois, assim que viro costas, o Mago vai-se embora sem mim!
Dormi bem naquela noite, mas não tão profundamente que não ouvisse a sineta a chamar-
me para o desjejum. Desci a tempo e fui recompensado com o melhor prato de toucinho
defumado com ovos que alguma vez comera na casa do Mago. Fiquei tão satisfeito que, antes
mesmo de me levantar da mesa, falei em voz alta, usando as palavras que o meu pai proferia
todos os Domingos depois do almoço.
— Estava excelente — disse. — Parabéns ao cozinheiro.
Mal acabei de pronunciá-las, as chamas brilharam com mais intensidade na lareira e um
gato começou a ronronar. Não via nenhum gato, mas o barulho que fazia era tão sonoro que era
capaz de jurar que as vidraças estremeciam. Obviamente o elogio fora apreciado.
Então, sentindo-me bastante satisfeito comigo mesmo, pus-me a caminho da aldeia para ir
buscar as provisões. O sol brilhava num céu azul sem nuvens, as aves cantavam e, depois da
chuva da véspera, o mundo parecia brilhante, resplandecente e novo.
Comecei pelo açougueiro, recolhi o saco do Mago, passei ao vendedor de hortaliças e
terminei na padaria. Havia alguns rapazes da aldeia encostados a um muro próximo. Não eram
tantos quanto da última vez e o líder deles, o rapagão com pescoço de touro, não se encontrava
ali.
Lembrando-me do que o Mago dissera, fui ter com eles.
— Desculpem da última vez — disse —, mas sou novo e não conhecia bem as regras. Mr.
Gregory disse que podiam ficar com um bolo e uma maçã cada um. — Dizendo isto, abri o saco
e entreguei a cada rapaz o que prometera. Os olhos deles arregalaram-se tanto que quase saltaram
das órbitas, e balbuciaram agradecimentos.
No alto do caminho estava alguém à minha espera. Era a garota chamada Alice, e mais uma
vez se colocara na sombra das árvores, como se não gostasse da luz do sol.
— Pode ficar com uma maçã e um bolo — disse-lhe.
Para minha surpresa, ela abanou a cabeça.
— Não tenho fome de momento — respondeu. — Mas há algo que quero realmente.
Preciso que honre a sua promessa. Preciso de ajuda.
Encolhi os ombros. Uma promessa é uma promessa e lembrava-me de a ter feito. Por
conseguinte, que mais podia fazer, a não ser cumprir a minha palavra?
— Diga-me o que quer e farei o melhor que puder — repliquei.
Mais uma vez o rosto dela se iluminou num sorriso verdadeiramente rasgado. Trazia um
vestido preto e os sapatos bicudos mas, não sei como, aquele sorriso fez-me esquecer tudo isso.
Mesmo assim, o que ela disse a seguir deixou-me apreensivo e estragou por completo o resto do
dia.
— Não vou te contar agora — disse ela. — Fá-lo-ei esta noite, pode ter a certeza, assim
que o Sol se puser. Venha ter comigo quando ouvir o sino do Velho Gregory.
Ouvi o sino mesmo antes do pôr do Sol e, com um peso no peito, desci a colina em
direção ao círculo de salgueiros onde os caminhos se cruzavam. Não me parecia certo ela estar a
tocar o sino daquela maneira. A menos que fosse trabalho para o Mago, mas tinha as minhas
dúvidas.
Lá no alto, os últimos raios de sol incidiam nos cumes das colinas rochosas com um tênue

brilho cor-de-laranja, mas aqui em baixo, entre os vimes, estava cinzento e cheio de sombras.
Estremeci ao ver a garota porque ela puxava a corda apenas com uma mão e, no entanto,
os badalos do sino grande soavam exageradamente. Apesar de ter os braços magros e a cintura
estreita, devia ser muito forte.
Parou de tocar assim que apareci e pousou as mãos nas ancas enquanto os ramos
continuavam a dançar e a tremer lá em cima. Ficamos a olhar um para o outro uma eternidade,
até os meus olhos serem atraídos para um cesto aos pés dela. Havia algo lá dentro coberto com
um pano preto.
Pegou no cesto e estendeu-o na minha direção.
— O que é? — perguntei.
— É para você, para que possa cumprir a sua promessa. Aceirei-o, mas não me sentia
satisfeito. Curioso, meti a mão lá dentro para levantar o pano preto.
— Não, deixe assim — Alice falou bruscamente, um tom cortante na sua voz. — Não
podem apanhar ar, senão estragam-se.
— O que são? — indaguei. Escurecia mais a cada minuto que passava e começava a sentir-
me nervoso.
— São apenas bolos.
— Muito obrigado — disse-lhe.
— Não são para você — retorquiu ela, começando a bailar-lhe um tênue sorriso aos cantos
da boca. — Esses bolos são para a Velha Mãe Malkin.
Fiquei com a boca seca e um arrepio percorreu-me a espinha. Mãe Malkin, a bruxa viva que
o Mago mantinha no poço no seu jardim.
— Não creio que Mr. Gregory vá gostar disto — disse. — Ele disse-me para me afastar
dela.
— O Velho Gregory é um homem muito cruel — respondeu Alice. — A pobre Mãe
Malkin está naquele buraco escuro e úmido no solo faz agora quase treze anos. Está certo tratar
tão mal uma mulher idosa?
Encolhi os ombros. Aquilo também não me agradara. Era difícil concordar com o que ele
fizera, mas alegara possuir muito bons motivos para tal.
— Olha — prosseguiu ela —, não se meterá em apuros porque o Velho Gregory não
precisa saber. Só lhe vai levar consolo. São os bolos preferidos dela, feitos pela família. Não há
nada de mal nisso. É só para ela se fortalecer por causa do frio, que atinge até os ossos.
Voltei a encolher os ombros. Parecia que todos os melhores argumentos lhe pertenciam.
— Dê-lhe apenas um bolo cada noite. Três bolos para três noites. É melhor fazê-lo à meia-
noite porque é nessa altura que ela tem mais apetite. Dê-lhe o primeiro esta noite.
Alice preparava-se para ir embora mas parou e virou-se para me sorrir.
— Podíamos ser bons amigos, você e eu — disse com uma risada.
Depois desapareceu nas sombras cada vez mais densas.