Um capítulo do nosso primeiro livrinho onde o que parece ser o mau acaba por se revelar surpreendentemente melhor do que aquilo que aparentemente seria o bom ou o bem. É isto que hoje vos trago por aqui e devo confessar: Ao fim da leitura deste sexto capítulo, só posso mesmo concordar com o mago quando ensina ao seu aprendiz Thom que nunca deverá confiar em nenhuma mulher que calse sapatos bicudos!
CAPÍTULO 6
UMA MENINA COM SAPATOS BICUDOS
A cozinha modificara-se desde a minha última visita. Fora acesa uma pequena fogueira na
lareira e estavam dois pratos de toucinho defumado com ovos em cima da mesa. Havia também
pão acabado de assar e uma bola grande de manteiga.
— Coma, rapaz, antes que esfrie — convidou o Mago. Ataquei de imediato e não
demoramos muito a dar conta das duas pratadas e também de metade do pão. O Mago recostou-
se na cadeira, cofiou a barba e fez-me uma pergunta importante.
— Não acha — inquiriu ele, os seus olhos fitando diretamente os meus — que foi o
melhor toucinho defumado com ovos que comeu?
Não concordei. O desjejum fora bem preparado. Estava bom, sim, sempre era preferível ao
queijo, mas já comera melhor. Já comera melhor todas as manhãs quando estivera em casa. A
minha mãe era muito melhor cozinheira, mas de certa forma não me parecia que fosse a resposta
pretendida pelo Mago. Então, disse-lhe uma mentira inofensiva, o tipo de falsidade que realmente
não faz mal nenhum e as pessoas ficam mais satisfeitas ao ouvirem-na.
— Sim — referi —, foi o melhor desjejum que alguma vez saboreei. E peço desculpa por
ter descido cedo demais. Prometo que não voltará a acontecer.
Ante aquelas palavras, o Mago esboçou um sorriso tão rasgado que julguei que o rosto se
lhe fosse abrir ao meio; depois deu-me uma palmada nas costas e levou-me de novo ao jardim.
Só quando chegamos lá fora é que o sorriso desapareceu de vez.
— Muito bem, rapaz — disse ele. — Há duas coisas que reagem bem à lisonja. A primeira
é uma mulher e a segunda é um demônio. Nunca falha.
Bem, eu não vira qualquer sinal de uma mulher na cozinha, o que só vinha confirmar as
minhas suspeitas — que era um demônio que preparava as nossas refeições. O mínimo que posso
dizer é que foi uma surpresa. Toda mundo pensava que um Mago matava demônios, ou que os
manipulava para que não pudessem fazer maldades. Quem iria acreditar que tinha um a cozinhar
e a limpar para ele?
— Este é o jardim ocidental — informou-me o Mago, enquanto percorríamos o terceiro
caminho, as pedras brancas fazendo barulho sob os nossos pés. — É um local seguro de estar,
seja de dia ou seja de noite. Eu próprio venho aqui com freqüência, sempre que tenho um
problema que necessita de aturada reflexão.
Atravessamos outra abertura na sebe e não tardamos a caminhar por entre as árvores. Senti
logo a diferença. As aves cantavam e as árvores oscilavam de leve com a brisa da manhã. Era um
local mais aprazível.
Continuamos a andar até abandonarmos as árvores e chegarmos a uma colina com uma
vista para as extensões rochosas à nossa direita. O céu estava tão limpo que conseguia ver os
muros de pedra que dividiam as vertentes inferiores em campos e marcavam o território de cada
agricultor. Na realidade, a vista estendia-se até ao alto da extensão rochosa mais próxima.
O Mago indicou um banco de madeira à nossa esquerda.
— Sente-se, rapaz — convidou.
Fiz o que me mandavam. Durante alguns momentos, o Mago ficou a olhar para mim, os
seus olhos verdes cravados nos meus. Depois começou a andar para cima e para baixo diante do
banco, sem dizer nada. Já não me olhava, mas fitava o espaço com uma expressão vaga nos olhos.
Afastou a comprida capa preta e enfiou as mãos nos bolsos das calças, muito repentinamente,
depois sentou-se ao meu lado e fez perguntas.
— Quantos tipos diferentes de demônio acha que existem? Não fazia a menor idéia. — Já
conheço dois tipos — referi —: os livres e os aprisionados, mas não seria sequer capaz de dar um
palpite sobre os outros.
— Isso é duplamente bom, rapaz. Lembrou-se do que te ensinei e revelou-se alguém que
não dá palpites à toa. Sabe, há tantos tipos de demônios quantos os tipos de pessoas e cada um
possui personalidade própria. No entanto, convém salientar que existem alguns tipos que podem
ser reconhecidos e designados por um nome. Umas vezes em virtude da forma que assumem e
outras por causa do seu comportamento e das partidas que pregam.
Remexeu no seu bolso direito e retirou um livrinho com encadernação de couro preto. A
seguir entregou-me.
— Tome, agora é seu — disse. — Tenha cuidado com ele e, faça o que fizer, não o perca.
O cheiro do couro era muito forte e o livro parecia novinho em folha. Foi com uma certa
decepção que o abri e encontrei cheio de páginas em branco. Acho que estava à espera de o ver
repleto dos segredos das atividades do Mago — mas não, tudo indicava que teria de ser eu a
escrevê-los, porque logo de seguida o Mago tirou uma caneta e um pequeno frasco de tinta do
bolso.
— Prepare-se para tomar notas — disse, levantando-se e recomeçando a andar para cá e
para lá diante do banco. — E tenha cuidado para não entornar a tinta, rapaz. Ela não escorre do
úbere de uma vaca.
Consegui desrolhar o frasco e depois, com muito cuidado, mergulhei nele a ponta da
caneta e abri o livro de notas na primeira página. O Mago iniciara já a lição e falava muito
depressa.
— Em primeiro lugar, há demônios peludos, que assumem a forma de animais. São
sobretudo cães, mas existem quase tantos gatos e uma ou outra cabra. Mas não se esqueça de
incluir também os cavalos — podem ser muito traiçoeiros. E, seja qual for a sua forma, os
demônios peludos podem dividir-se naqueles que são hostis, naqueles que são amigáveis ou nos
que não são nem uma coisa nem outra.
Depois há os barulhentos, que por vezes se transformam em arremessadores de pedras e
podem ficar muito zangados quando provocados. Um dos tipos mais desagradáveis de todos é o
estripador de gado porque tem também um fraco por sangue humano. Mas não fique com a idéia
de que nós, os Magos, só lidamos com demônios, pois os mortos perturbados nunca andam
muito longe. A seguir, e só para complicar, as bruxas constituem realmente um problema no
Condado. De momento, não temos bruxas locais com que nos preocupar, mas a leste, próximo de
Pendle Hill, constituem uma verdadeira ameaça. E lembr-se de uma coisa: nem todas as bruxas
são iguais. Inserem-se em quatro categorias rudimentares — as malévolas, as benévolas, as
falsamente acusadas e as desconhecedoras.
Nesta altura, como certamente terão adivinhado, eu estava mesmo em apuros. Para
começar, ele falava tão depressa que não conseguira escrever uma única palavra. Em segundo
lugar, não conhecia sequer todos as palavras difíceis que ele estava a usar. Todavia, naquele
momento ele fez uma pausa. Acho que deve ter percebido a expressão confusa no meu rosto.
— Qual é o problema, rapaz? — indagou. — Vamos, desembucha. Não tenha medo de
fazer perguntas.
— Não compreendi tudo o que disse a respeito das bruxas — respondi. — Não sei o que
significa “malévola”. Ou, já agora, “benévola”.
— Malévola significa má — explicou-me. — Benévola significa boa. E uma bruxa
desconhecedora significa que é uma bruxa que não sabe que é bruxa e, por ser mulher, isso torna-
a duplamente perigosa. Nunca confie numa mulher — disse o Mago.
— A minha mãe é uma mulher — contrapus, sentindo-me subitamente um tanto irado —,
e eu confio nela.
— As mães são normalmente mulheres — afirmou o Mago. — E as mães são
normalmente dignas de confiança, desde que se seja seu filho. De outro modo, fique atento! Já
tive mãe e confiava nela, por isso conheço bem a sensação. Gosta de garotas? — perguntou de
repente.
— Na verdade, não conheço quaisquer garotas — confessei. — Não tenho irmãs.
— Bem, nesse caso, pode ser facilmente vítima das manhas delas. Fique atento às garotas
da aldeia. Em especial a alguma que use sapatos bicudos. Anote isso. É um começo tão bom
como qualquer outro.
Perguntei-me o que haveria de tão terrível em usar sapatos bicudos. Sabia que a minha mãe
não ficaria satisfeita com o que o Mago acabara de dizer. Ela defendia que se deviam aceitar as
pessoas tal como eram e não dar ouvidos à opinião de outrem. Mas eu tinha outra escolha?
Então, mesmo no alto da primeira página escrevi “Garotas da Aldeia com Sapatos Bicudos”.
Ele me viu escrever, depois pediu-me o livro e a caneta. — Olha — disse —, vai ter de ser
muito mais rápido a tomar notas. Há muito que aprender e não tardará que tenha enchido uma
dúzia de livros destes, mas, por agora, três ou quatro tópicos serão suficientes para começar.
Depois ele escreveu “Demônios Peludos” no alto da segunda página. A seguir
“Barulhentos” no alto da terceira página; e, por último, “Bruxas” no alto da quarta página.
— Pronto — disse. — Já tem um começo. Escreva apenas algo que aprenda hoje debaixo
de cada um destes quatro tópicos. Mas de momento há um assunto mais urgente. Necessitamos
de provisões. Por isso vai ter de ir à aldeia; caso contrário, amanhã passaremos fome. Nem o
melhor cozinheiro consegue apresentar resultados sem provisões. Lembre-se de que terá de vir
tudo dentro do meu saco. É o açougueiro que o tem, portanto dirija-se lá em primeiro lugar.
Pergunte apenas pela encomenda de Mr. Gregory.
Deu-me uma pequena moeda de prata, avisando-me que não perdesse o troco, e depois
mandou-me descer a colina pelo caminho mais rápido para a aldeia.
Não tardou que voltasse a caminhar por entre as árvores até chegar finalmente a uns
degraus que me levaram a um carreiro íngreme e estreito. Cerca de cem passos mais adiante, virei
uma esquina e apareceram as placas cinzentas dos telhados de ardósia de Chipenden.
A aldeia era maior do que eu esperara. Havia pelo menos uma centena de pequenas
cabanas, depois uma taberna, uma escola e uma igreja grande com campanário. Não se via sinal
de uma praça de mercado, mas a rua principal empedrada, que era bastante inclinada, estava cheia
de mulheres com cestos carregados que entravam nas lojas e saíam apressadas. Cavalos e carroças
aguardavam de ambos os lados da rua, pelo que era evidente que as mulheres dos agricultores
locais vinham aqui às compras e, sem dúvida, também as gentes dos lugarejos vizinhos.
Dei facilmente com o talho e juntei-me a uma fila de mulheres ruidosas, que gritavam
todas com o açougueiro, um homem bem-disposto, grande e corado de barba ruiva. Parecia
conhecer cada uma delas e estas riam sonoramente das suas piadas, que pareciam não ter fim.
Não entendi a maior parte, mas via-se que as mulheres percebiam e dava a impressão de estarem
realmente a divertir-se.
Ninguém me prestou muita atenção, mas chegou finalmente a minha vez de ser atendido.
— Venho buscar a encomenda de Mr. Gregory — disse ao açougueiro.
Assim que falei, fez-se silêncio no estabelecimento e as gargalhadas cessaram. O açougueiro
baixou-se por detrás do balcão e pegou num saco grande. Ouvi as pessoas cochichar atrás de
mim, mas, apesar de ter apurado o ouvido, não percebi muito bem o que diziam. Quando me
virei, olhavam para todo o lado menos para mim. Algumas estavam até de olhos postos no chão.
Entreguei a moeda de prata ao açougueiro, verifiquei cuidadosamente o troco, agradeci-lhe
e saí da loja com o saco, colocando-o ao ombro quando cheguei à rua. A visita ao vendedor de
hortaliças não demorou nada. As provisões estavam já embrulhadas, de maneira que meti o
volume no saco, que começava agora a ficar bastante pesado.
Até ali correra tudo bem, mas quando me encaminhei para a padaria, vi o grupo de
rapazes.
Eram uns sete ou oito, sentados num muro de jardim. Não havia nada de estranho nisso,
exceto o fato de não estarem a conversar uns com os outros — concentravam-se em olhar-me
com rostos famintos, qual matilha de lobos, observando cada passo que eu dava ao aproximar-me
da padaria.
Quando saí de lá, continuavam no mesmo lugar e, no momento em que principiei a subir a
colina, eles começaram a seguir-me. Bem, apesar de ser demasiada coincidência pensar que
tinham decidido subir a mesma colina, não fiquei preocupado. Seis irmãos haviam-me dado
montes de prática de luta.
Ouvi o som das suas botas cada vez mais próximo. Estavam a alcançar-me muito
rapidamente, mas isso talvez se devesse ao fato de eu caminhar cada vez mais devagar. Sabem,
não queria que pensassem que estava com medo e, de qualquer forma, o saco pesava e a colina
que subia era muito íngreme.
Apanharam-me cerca de uma dúzia de passos antes dos degraus, precisamente no ponto em
que o carreiro se dividia numa pequena mata, as árvores aglomerando-se de cada lado para
bloquearem o sol da manhã.
— Abra o saco e mostre-nos o que temos — ordenou uma voz atrás de mim.
Era uma voz sonora, cava, acostumada a dizer às pessoas o que fazerem. Possuía um
timbre de dureza e perigo que me disse que aquele a que pertencia gostava de infligir dor e
andava sempre à procura da sua próxima vítima.
Virei-me para o enfrentar mas agarrei o saco ainda com mais força, mantendo-o
firmemente ao ombro. Aquele que falara era o líder do grupo. Não existia a menor dúvida. Os
restantes tinham caras magras e chupadas, como se estivessem a precisar de uma boa refeição,
mas parecia que ele andara a comer pelos outros todos. Tinha pelo menos mais uma cabeça de
altura do que eu, com ombros largos e um pescoço semelhante ao de um touro. O seu rosto
também era grande, de faces vermelhas, mas tinha uns olhos muito pequenos e não dava mostras
de pestanejar sequer.
Acho que se ele não tivesse estado ali nem tentado desafiar-me, talvez eu me houvesse
compadecido. Afinal, alguns dos rapazes pareciam meios esfomeados e havia imensas maçãs e
bolos no saco. Por outro lado, não eram meus para os estar a distribuir.
— Isto não me pertence — disse. — Pertence a Mr. Gregory.
— O último aprendiz dele não parecia muito incomodado com isso — redarguiu o líder,
aproximando mais o seu rosto grande do meu. — Ele costumava abrir o saco para nós. Se tivesse
algum juízo, faria o mesmo. Se não o quiser fazer por bem, então terá de ser por mal. Mas não vai
gostar muito e no fim virá a dar tudo no mesmo.
O grupo começou a acercar-me e senti alguém atrás de mim puxar o saco. Mesmo assim,
não o larguei e olhei para os olhos miudinhos do líder, esforçando-me por não pestanejar.
Naquele momento, aconteceu algo que nos apanhou a todos de surpresa. Verificou-se um
movimento nas árvores em algum lugar à minha direita e viramo-nos todos para lá.
Estava um vulto negro nas sombras e, quando os meus olhos se adaptaram ao escuro, vi
que era uma garota. Avançava lentamente na nossa direção, mas a sua aproximação era tão
silenciosa que até se podia ouvir cair um alfinete e tão suave que ela parecia flutuar, em vez de
caminhar. Depois parou mesmo à beira da sombra das árvores, como se não quisesse avançar
para a luz do sol.
— Porque não o deixam em paz? — inquiriu. Parecia uma pergunta, mas o tom na voz
dela dizia-me que era uma ordem.
— O que tem a ver com isso? — perguntou o líder do grupo, espetando o queixo e
cerrando os punhos.
— Não é comigo que deve se preocupar — respondeu ela das sombras. — Lizzie voltou, e
se não fizer o que eu digo, terá de responder perante ela.
— Lizzie? — estranhou o rapaz, recuando um passo.
— Lizzie dos Ossos. É minha tia. Não me diga que nunca ouviu falar dela...
Já alguma vez sentiram que o tempo passa tão devagar que quase parece parado? Alguma
vez ouviram um relógio em que o próximo tique parece levar uma eternidade a seguir o último
taque? Bem, foi exatamente assim até que, muito subitamente, a garota sibilou sonoramente
através dos dentes cerrados. Depois voltou a falar.
— Vamos — disse ela. — Desapareçam! Vão-se embora, e depressa, senão mato-os!
Foi imediato o efeito sobre o grupo. Captei a expressão em alguns dos rostos deles e vi que
não estavam apenas com medo. Estavam apavorados e à beira do pânico. O líder girou nos
calcanhares e fugiu imediatamente colina abaixo, com os outros a segui-lo muito de perto.
Não sabia por que motivo estavam tão assustados mas queria também fugir. A garota
fitava-me de olhos arregalados e não me achei capaz de controlar devidamente as pernas. Sentia-
me como um rato paralisado pelo olhar fixo de um furão prestes a saltar.
Obriguei o meu pé esquerdo a mover-se e, lentamente, virei o meu corpo para as árvores a
fim de seguir a direção em que o meu nariz apontava, mas continuava a agarrar o saco do Mago.
Fosse ela quem fosse, não estava disposto a abrir mão dele.
— Não vai fugir também? — perguntou-me ela.
Abanei a cabeça, mas tinha a boca tão seca que não confiava em mim para tentar falar.
Sabia que diria as palavras erradas.
Ela teria provavelmente a minha idade — quando muito seria ligeiramente mais nova.
Tinha um rosto bastante bonito, pois possuía olhos castanhos grandes, malares salientes e cabelo
preto comprido. Envergava um vestido preto cingido na cintura com um pedaço de corda branca.
Mas enquanto eu registrava tudo isto, percebi subitamente de algo que me incomodou.
A garota calçava sapatos bicudos, e lembrei-me de imediato do aviso do Mago. Mas
mantive-me firme, decidido a não fugir como os outros.
— Não vai me agradecer? — perguntou ela. — Seria agradável ouvir um obrigado.
— Obrigado — disse-lhe, desajeitadamente, conseguindo finalmente dizer uma palavra.
— Bem, já é um começo — gracejou ela. — Mas para me agradecer como deve ser, precisa
de me dar algo, não é verdade? Um bolo e uma maçã serão suficientes de momento. Não estou a
lhe pedir muito. Há muitos no saco e o Velho Gregory não irá dar por isso, e se der, não dirá
nada.
Fiquei chocado de a ouvir chamar “Velho Gregory” ao Mago. Sabia que ele não gostava
que o tratassem assim e alertou-me para dois aspectos. Em primeiro lugar, a garota tinha pouco
respeito por ele, e, em segundo, não o temia nem um bocadinho. Mas, no lugar de onde eu vinha,
a maioria das pessoas tremia só da idéia de que o Mago pudesse estar nas proximidades.
— Lamento — respondi —, mas não o posso fazer. Não me compete dá-los.
Ela olhou-me então com dureza e durante um bom bocado não falou. Pensei a dada altura
que fosse sibilar entre dentes. Olhei para ela, tentando não pestanejar, até que um tênue sorriso
lhe iluminou o rosto e ela voltou a falar.
— Então terei de me contentar com uma promessa.
— Uma promessa? — estranhei, perguntando-me o que pretenderia.
— Uma promessa de me ajudar assim como eu te ajudei. Não preciso de qualquer ajuda
neste momento, mas talvez venha a precisar um dia.
— Está bem — respondi-lhe. — Se alguma vez vier a precisar de ajuda, é só pedir.
— Como se chama? — indagou ela, brindando-me com um largo sorriso.
— Tom Ward.
— Bem, o meu nome é Alice e vivo acolá — disse, apontando para o meio das árvores. —
Sou a sobrinha preferida de Lizzie dos Ossos.
Lizzie dos Ossos era um nome estranho mas teria sido indelicado da minha parte
mencioná-lo. Fosse lá quem fosse, o seu nome bastara para apavorar os rapazes da aldeia.
E a nossa conversa terminou ali. Viramo-nos os dois e seguimos caminhos separados, mas
enquanto nos afastávamos, Alice gritou por cima do ombro.
— Agora tenha cuidado. Não queira ter o mesmo fim que o último aprendiz do Velho
Gregory.
— O que lhe aconteceu? — inquiri.
— É melhor perguntar ao Velho Gregory! — gritou ela enquanto desaparecia por entre as
árvores.
Quando regressei, o Mago verificou cuidadosamente o conteúdo do saco, dando baixa na
lista.
— Tive algum problema na aldeia? — perguntou, depois de finalmente terminar.
— Uns rapazes seguiram-me colina acima e mandaram-me abrir o saco mas eu neguei-me a
fazê-lo — referi.
— Foi muito corajoso — afirmou o Mago. — Para a próxima não haverá nenhum
problema se os deixar tirar alguns bolos e maçãs. A vida já é bastante difícil, mas alguns deles são
de famílias muito pobres. Encomendo sempre a mais, para o caso de eles pedirem.
Fiquei aborrecido. Se ele me tivesse dito aquilo antes!
— Não o quis fazer sem antes lhe perguntar — redargui.
O Mago arqueou os sobrancelhas.
— Querias dar-lhes alguns bolos e maçãs?
— Não gosto que me provoquem — disse —, mas alguns deles tinham um ar realmente
esfomeado.
— Para a próxima confie nos seus instintos e use a sua iniciativa — replicou o Mago. —
Confie na voz dentro de si. Raramente se engana. Um Mago depende muito dela, porque às vezes
pode significar a diferença entre a vida e a morte. Mas isso é outra coisa que precisamos de
descobrir a eu respeito. Se pode ou não confiar nos seus instintos.
Fez uma pausa, fitando-me intensamente, os seus olhos verdes perscrutando o meu rosto.
— Algum problema com garotas? — inquiriu subitamente.
Como ainda estava aborrecido, não dei uma resposta direta à pergunta dele.
— Problema nenhum — disse.
Não era uma mentira, pois Alice ajudara-me, o que era precisamente o oposto. Mesmo
assim, julguei que me estivesse a perguntar se encontrara alguma garota e sabia também que lhe
devia ter falado dela. Especialmente porque usava sapatos bicudos.
Cometi muitos erros como aprendiz e aquele foi o meu segundo mais grave — não contar
toda a verdade ao Mago.
O primeiro, mais grave ainda, foi fazer a promessa a Alice.
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