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Lua Azul - blog de lua azul

Viajando pelo mundo dos livros... "O Aprendiz do Mago" de Joseph Delaney - Capítulo 4

por lua azul

Hoje o texto que vos trago já não é tão assustador como o de ontem apesar de pertencer exactamente à mesma obra. Tem só uma ou duas coisinhas ali pelo meio que talvez nos possam imprecionar mais um bocado, mas daí para a frente, a única coisa que sentimos mesmo penso que é uma vontade enorme de continuarmos a ler sempre mais e mais para tentarmos perceber que tipo de segredos é que se escondem por de trás da personagem da mãe de Thom e também os que se relacionam com o irmão do mago com quem ele não se consegue entender. O excertozinho do livro, deixá-lo-ei nas linhas que se seguem tal como tenho feito em cada um destes meus últimos posts, espero que a história, apesar de um tanto ou quanto assustadora, possa cativar alguns leitores aqui no lerparaver pois está-me a dar um goso imenso poder desenvolver este projecto por aqui!

CAPÍTULO 4
A CARTA

— Vivi nesta casa quando criança — disse o Mago —, e vi coisas que te deixariam todo
arrepiado, mas eu era o único que as conseguia ver e o meu pai costumava bater-me por dizer
mentiras. Era usual sair uma coisa da cave. Deve ter acontecido o mesmo com você. Acertei?
Acenei com a cabeça.
— Bem, não fique preocupado, rapaz. E só mais uma imagem fantasmagórica, um
fragmento de uma alma perturbada que alcançou uma situação melhor. Se ele não deixasse para
trás a sua pior parte, ficaria preso aqui para sempre.
— O que foi que ele fez? — indaguei, a minha voz ecoando ligeiramente no teto.
O Mago abanou a cabeça pesarosamente. — Tratava-se de um mineiro cujos pulmões
estavam tão doentes que teve de deixar de trabalhar. Passava os dias e as noites a tossir e com
falta de ar, e a sua pobre esposa é que ganhava para o sustento de ambos. Trabalhava numa
padaria, mas, para mal dos dois, ela era uma mulher muito bonita. Poucas são as mulheres em
quem se pode confiar e as bonitas são as piores de todas.
“Para complicar, ele era um homem ciumento e a doença tornou-o mais amargo. Uma
noite, ela atrasou-se muito no regresso para casa, do trabalho, e ele ia constantemente à janela,
andando de um lado para o outro, ficando cada vez mais furioso por pensar que ela estava com
outro homem.
“Quando a mulher finalmente chegou, ele estava numa fúria tal que lhe rachou a cabeça
com um pedaço grande de carvão. Depois deixou-a ali, nas lajes, moribunda, e desceu à cave para
abrir uma sepultura. Ela ainda estava viva quando ele voltou, mas não conseguia se mexer, nem
sequer gritar. E o terror que se apodera de nós, pois foi exatamente assim que ela se sentiu
quando ele lhe pegou e a levou para a escuridão da cave. Ela ouvira-o cavar. Sabia o que ele ia
fazer.
“Mais tarde, naquela noite, ele suicidou-se. É uma história triste, mas, apesar de agora
repousarem em paz, a imagem fantasmagórica dele permanece aqui, assim como as últimas
lembranças dela, ambas suficientemente fortes para atormentarem pessoas como nós. Vemos
coisas que os outros não conseguem ver, o que é simultaneamente uma bênção e uma maldição.
Porém, é algo muito útil, no nosso ofício.
Estremeci. Sentia pena da pobre esposa que fora assassinada e sentia pena do mineiro que a
matara. Sentia até pena do Mago. Imagine, ter de passar a infância numa casa como esta!
Olhei para a vela, que colocara no meio da mesa. Estava quase no fim e a chama iniciava a
sua última dança tremulante, mas o Mago não deu mostras de querer voltar lá para cima. Não
gostei das sombras no rosto dele. Pareciam ir mudando gradualmente, como se lhe estivesse a
nascer um focinho de porco ou outra coisa qualquer.
— Sabe como venci o meu medo? — perguntou.
— Não, senhor.
— Uma noite, estava tão aterrado que gritei antes de conseguir me conter. Acordei todo
mundo e, num acesso de fúria, o meu pai levantou-me pelo colarinho e me trouxe pelas escadas
abaixo até esta cave. Depois, foi buscar um martelo e cravou pregos na porta, fechando-me aqui
dentro.
“Eu não era muito crescido. Provavelmente, teria sete anos, no máximo. Subi as escadas e,

gritando até rebentar, raspei e bati na porta. Mas o meu pai era um homem insensível e deixou-
me completamente sozinho no escuro e tive de ficar aqui horas, até muito depois da aurora.
Passados instantes, acalmei e, sabe o que fiz então?
Abanei a cabeça, evitando olhá-lo no rosto. Os seus olhos brilhavam com muita
intensidade e pareceu-me mais do que nunca um lobo.
— Desci as escadas e sentei-me aqui nesta cave, às escuras. Depois respirei fundo três vezes
e enfrentei o meu medo. Enfrentei a própria escuridão, que é a coisa mais aterradora de todas,
especialmente para pessoas como nós, porque há coisas que vêm ter conosco no escuro.
Procuram-nos com murmúrios e assumem formas que só os nossos olhos conseguem ver.
Mas saí-me bem e quando deixei esta cave, o pior passara.
Naquele momento a vela derreteu por completo e depois apagou-se, mergulhando-nos na
mais absoluta escuridão.
— Agora é que é, rapaz — disse o Mago. — Só estamos você, eu e o escuro. Consegue
agüentar? Está preparado para ser meu aprendiz?
A voz dele parecia diferente, mais cava e estranha. Imaginei-o a caminhar nas quatro patas,
pêlo de lobo a cobrir-lhe o rosto, os dentes a aumentarem de tamanho. Eu tremia e apenas
consegui falar depois de respirar fundo pela terceira vez. Só então lhe dei a resposta. Era o que o
meu pai dizia sempre que tinha de fazer algo desagradável ou difícil.
— Alguém tem de o fazer — retorqui. — Portanto, posso ser eu.
O Mago deve ter achado piada, porque a sua gargalhada encheu toda a cave antes de
ressoar pelas escadas ao encontro do próximo trovão, que vinha a descer.
— Há quase treze anos — afirmou o Mago —, enviaram-me uma carta lacrada. Era breve
e concisa e estava escrita em grego. Foi a sua mãe que a mandou. Sabe o que dizia?
— Não — respondi tranqüilamente, sentindo curiosidade pelo que vinha a seguir.
— “Acabei de dar à luz um rapaz”, escreveu ela, “e é o sétimo filho de um sétimo filho.
Chama-se Thomas J. Ward e é a minha dádiva ao Condado. Quando ele tiver idade suficiente,
mandá-lo-emos chamar. Prepare-o bem. Será o melhor aprendiz que alguma vez teve, e também o
seu último.”
“Nós não usamos magia, rapaz — continuou o Mago, a sua voz pouco mais do que um
murmúrio na escuridão. — As principais ferramentas do nosso ofício são o bom senso, a
coragem e proceder a registros rigorosos, para que possamos aprender com o passado. Acima de
tudo, não acreditamos em profecias. Não acreditamos que o futuro está determinado. Por isso, se
o que a sua mãe escreveu se vier a concretizar, então é porque nós fizemos com que isso se
concretizasse. Compreende?
Havia um tom de raiva na voz dele mas sabia que não me era dirigida e, por isso, anuí na
escuridão.
— Quanto a ser a dádiva da sua mãe ao Condado, cada um dos meus aprendizes era o
sétimo filho de um sétimo filho. Por isso não comece a julgar-se especial. Tem muito estudo e
trabalho árduo pela frente.
“A família pode ser um estorvo — prosseguiu o Mago após uma pausa, a sua voz mais
suave, já sem a raiva. — Só me restam agora dois irmãos. Um é serralheiro e damo-nos bem, mas
o outro não fala comigo há mais de quarenta anos, apesar de ainda viver em Horshaw.
Quando abandonamos a casa, a tempestade dissipara-se e havia luar. No momento em que
o Mago fechou a porta da rua, reparei pela primeira vez no que fora talhado na madeira.

O Mago indicou-o com a cabeça.
— Uso símbolos como este para avisar outros com capacidade para os lerem ou por vezes
apenas para estimular a minha própria memória. Reconhecerá a letra grega gama {2}. Tanto pode
indicar um fantasma como uma imagem fantasmagórica. A cruz em baixo, à direita, é o numeral
romano para dez, que é o grau mais baixo de todos. Acima de seis é apenas uma imagem
fantasmagórica. Não existe nada naquela casa que te possa fazer mal, desde que seja corajoso.
Lembre-se, o escuro alimenta-se do medo. Seja corajoso e não há muito que uma imagem
fantasmagórica possa fazer.
Se ao menos eu o tivesse sabido desde o início!
— Anime-se, rapaz — disse o Mago. — A sua cara chega quase às botas! Bem, talvez isto
te alegre. — Tirou do bolso um bocado de queijo amarelo, partiu um pequeno naco e entregou-
me. — Mastigue-o — advertiu —, mas não o engula de imediato.
Segui-o pela rua empedrada. O ar estava úmido, mas pelo menos não chovia e a oeste as
nuvens pareciam lã de carneiro e começavam a rasgar-se e a separar-se em faixas irregulares.
Deixamos a aldeia e continuamos para sul. Mesmo no seu limite, quando a rua empedrada
se transformava numa viela lamacenta, havia uma pequena igreja. Parecia abandonada: faltavam
telhas de lousa no telhado e a tinta desprendia-se da porra principal. Quase não tínhamos
avistado ninguém desde que saíramos da casa, mas estava ali um homem de pé, à porta. Tinha
cabelo branco, escorrido, gorduroso e desgrenhado.
As roupas escuras indicavam tratar-se de um padre, mas, quando nos aproximamos dele, o
que realmente despertou a minha atenção foi a expressão no seu rosto. Olhava-nos
ameaçadoramente, o semblante todo distorcido. E depois, de forma dramática, fez um enorme
sinal da cruz, chegando mesmo a pôr-se na ponta dos pés ao começá-lo, estendendo o mais que
podia o indicador da mão direita para o céu. Já vira antes padres fazer o sinal da cruz, mas nunca
com um gesto tão exagerado, tão cheio de raiva. Uma raiva que parecia ser-nos dirigida.
Calculei que tivesse alguma razão de queixa do Mago, ou talvez do trabalho que ele fazia.
Sabia que o ofício deixava a maior parte das pessoas nervosa, mas nunca vira semelhante reação.
— O que tem ele? — inquiri, depois de o deixarmos para trás e estarmos a uma distância a
que não seríamos ouvidos.
— Padres! — grunhiu o Mago, a raiva nítida na sua voz. — Sabem tudo mas não vêem
nada! E aquele é pior do que a maioria! É o meu outro irmão.
Teria gostado de saber mais coisas, mas por uma questão de bom senso, não continuei a
questioná-lo. Parecia haver muito que saber sobre o Mago e o seu passado, mas parecia também
que eram coisas que ele só me contaria quando se sentisse preparado.
Assim, continuei a segui-lo para sul, carregando o seu pesado saco e pensando no que a
minha mãe escrevera na carta. Nunca fora pessoa de se gabar ou de fazer afirmações precipitadas.
A minha mãe só dizia o que tinha de dizer, por isso havia uma intenção em cada palavra sua.
Normalmente, ela limitava-se a levar a vida a diante e a agir conforme as necessidades. O Mago
dissera-me que não havia muito que se pudesse fazer pelas imagens fantasmagóricas, mas uma vez

a minha mãe silenciara as da Colina do Carrasco.
Ser o sétimo filho de um sétimo filho não era nada por aí além, neste tipo de atividade —
bastava tão-somente ser aceito como aprendiz do Mago. Mas eu sabia que havia algo mais que me
tornava diferente.
Eu também era filho da minha mãe.