A KENNEDY QUE A FAMÍLIA ESCONDEU
Rosemary era apreciada pela imprensa, mas desapareceu da vida pública aos 23 anos após decisão trágica do próprio pai.
POR ALEXANDRE CARVALHO
Já senador pelos Estados Unidos, John Fitzgerald Kennedy fazia campanha pela reeleição, em 1958, quando seu staff providenciou arranjos para uma visita secreta. Durante a passagem do futuro presidente americano pelo centro-oeste do país, no estado de Wisconsin, Jack ou JFK (como também era chamado) fugiu de sua agenda oficial para uma parada numa instituição católica para crianças excepcionais. Só que a pessoa que ele queria encontrar ali não era menor de idade. Longe disso. Era uma mulher chegando aos seus 40 anos: a mais velha de suas irmãs. A ocasião era especial porque o político não encontrava Rosemary havia 17 anos. Um distanciamento erigido por seus próprios pais, que quiseram apagar Rosie da narrativa vitoriosa do clã Kennedy, uma “família real” que o público americano se acostumou a reverenciar. De fato, o milionário Joseph Patrick Kennedy Sr., sua esposa e os nove filhos e filhas pareciam os personagens dos sonhos das colunas sociais. Além de muito ricos, eram bonitos, inteligentes, charmosos, com vocação para a liderança e para a arena política (além de John, presidente, seus irmãos Bob e Ted teriam cadeiras no Senado). Eram um híbrido apolíneo entre o american dream e a tradição monárquica de príncipes e princesas. Só Rosemary não era assim. Sua mera existência foi considerada motivo de embaraço para os pais, que a varreram para debaixo do tapete — tanto quanto foi possível para uma família de expoentes da alta sociedade. Tudo por- que a menina tinha uma deficiência intelectual, cujo grau é difícil de determinar hoje, uma vez que os Kennedy primeiro negaram sua diferença (uma negação a si próprios, inclusive), depois trataram de escondê-la. Até que, temendo que a vida adulta da filha resultasse num vexame aos olhos da opinião pública, buscaram uma saída radical, arriscada e que teve um desfecho trágico — para não dizer criminoso. Quando Jack Kennedy foi ao encontro da irmã que ele não via por tanto tempo, o então senador ficou chocado com o que viu. Rosemary, antes uma garota doce e sonhadora, cuja alteridade era comportar-se como adolescente apesar de seus 20 anos, já não era mais capaz de falar nem de andar — pelo menos não sem a ajuda das freiras do local de seu confinamento. De uma jovem com atraso intelectual, Rosie tornou-se uma deficiente de graves limitações, que jamais voltaria a ter autonomia na vida, nem os romances e aventuras que enchiam sua mente juvenil.
Culpa de uma lobotomia, encomendada por seu próprio pai. À época do procedimento que destruiu seu cérebro, Rosemary Kennedy tinha só 23 anos de idade.
PATINHO FEIO
Ainda bebê, Rosemary demoraria mais que o normal para ficar sentada sozinha, para engatinhar e aprender a andar e falar. Um atraso que não chegou a preocupar tanto: crianças têm ritmos diferentes de desenvolvimento na primeira infância, sem reflexos no amadurecimento posterior. A constatação de que Rosie seria uma menina diferente só veio no jardim da infância: os professores logo notaram que ela era atrasada em relação aos coleguinhas de 5 anos. Um alerta que Joe e Rose Kennedy (a mãe tinha nome parecido), num primeiro momento, não admitiam aceitar. Até que submeteram a filha a um teste de QI, e o resultado ruim (não divulgado) confirmou o que a escola dizia.
Nessa época, os pais de Rosemary ainda agiram, sob diversos aspectos, como pais que queriam o melhor para sua filha. Até porque acreditavam que, com os cuidados certos, ela acabaria avançando e alcançando o ritmo das outras crianças: e até superando-as (ela era uma Kennedy, afinal de contas). Joe contratou tutores para reforçar os estudos dela após o horário escolar, e os irmãos de Rosie foram estimulados a incluí-la em todas as suas atividades, mesmo que ela não conseguisse acompanhar a desenvoltura dos demais.
O atraso dela também era físico, de modo que não tinha a habilidade necessária para jogar tênis ou manejar um pequeno barco. E comandar um barquinho era mesmo demais para Rosie: ela mal conseguia se equilibrar numa bicicleta, e tinha problemas em diferenciar direita e esquerda. Também tinha dislexia (não diagnosticada na época), o que lhe trazia dificuldades na escrita e na leitura — embora soubesse ler e escrever, atividade que lhe dava prazer e que evoluiu para a redação de muitas cartas. Durante a infância, é provável que as limitações relativas de Rosemary Kennedy não lhe trouxessem infelicidade. O acolhimento dos irmãos e a união de sua família podiam superar uma ou outra frustração. Mas as angústias da adolescência seriam terríveis para a pequena.
ISOLADA DO MUNDO
“Querido papai, eu tive um sábado adorável. Muito obrigada por ter vindo me ver. Eu faço qualquer coisa para deixá-lo feliz. Detesto desapontá-lo, com qualquer coisa. Volte logo. Me sinto muito sozinha todos os dias. Até breve (eu espero).” Essa mensagem pungente, exalando solidão e saudade, foi escrita por Rosemary aos 16 anos, num de seus muitos períodos em colégios internos, nos quais a garota se via infeliz, longe dos irmãos queridos, afastada da família. Os pais iam mudando Rosie de escola conforme os professores não conseguiam extrair dela a evolução que os Kennedy esperavam. Um sofrimento que era ainda maior por conta de sua imaturidade emocional. Foi nesse período que a garota começou a exibir um comportamento agressivo. Passou a ter ataques de fúria e a fugir das escolas, o que aterrorizava seus pais, preocupados com as consequências dessas saídas. Na época, os EUA viviam a Grande Depressão, e os Kennedy temiam que a garota fosse sequestrada por alguém que soubesse da fortuna da família. Mas havia um medo maior: Rosemary era muito bonita. Que inconveniência poderia surgir de um encontro fortuito entre uma moça linda e inocente, de comportamento imprevisível, com um aproveitador qualquer? Manchetes terríveis de jornal inundavam os pesadelos de Joseph e Rose Kennedy.
Na época, um endocrinologista disse ao pai de Rosie que poderia curá-la com injeções de hormônio. Sem embasamento científico nenhum. Desesperado, Joe topou a oferta, e sua filha passou a receber injeções semanalmente — o que não lhe trouxe benefício algum, mas pode ter rendido prejuízos à sua saúde (física e mental). O episódio mostra como o chefe do clã já era passível de aceitar que sua própria filha fosse alvo de procedimentos médicos experimentais. Rosemary, que tinha apenas um atraso intelectual, foi desde a adolescência tratada como rato de laboratório.
IDÍLIO INGLÊS
Todo esse tormento teve um breve período de alivio — e até felicidade — em 1938, quando Joseph Kennedy foi nomeado embaixador dos Estados Unidos na Inglaterra, e a família toda se mudou para Londres. Rosemary tinha então 20 anos, e ficou encantada com a rotina de recepções diplomáticas e bailes na Europa. Chegou a ser apresentada à rainha da Inglaterra num evento formal, ocasião para a qual foi exaustivamente preparada pelo resto da família, que temia uma gafe qualquer. Ajudavam-na a decorar o que dizer e a segurar seu buquê. As irmãs faziam sua maquiagem, pois ela se borrava com o batom. Nos bailes, seu pai e seus irmãos se revezavam em todas as danças com ela, impedindo que conversasse com outros homens — e sua deficiência intelectual fosse desmascarada. Sem falar nada, Rosie era só uma Kennedy como o resto da família, e ainda se destacava pela beleza. Algo que afligia ainda mais sua família, pois isso a tornava queridinha dos fotógrafos. Os Kennedy permitiam que tirassem seu retrato, mas bloqueavam as entrevistas. Aliás, seus pais falavam por ela para a imprensa: disseram a uma revista que Rosie estava se preparando para ser professora de jardim da infância; para outra publicação, que ela tinha interesse pelo trabalho social, mas não desconsiderava atuar como atriz. Tudo mentira, claro.
Mas para Rosie era um conto de fadas. E ficou mais encantado quando, na Inglaterra, a moça foi mandada para uma instituição diferente, em que recebeu atenção especial da freira Isabel Eugene. A religiosa havia sido treinada pessoalmente por Maria Montessori, a médica e educadora que desenvolveu um método com seu nome conhecido por equilibrar disciplina com liberdade, permitindo que floresça a verdadeira natureza de cada aluno, dentro de sua individualidade. Essa aprendizagem montessoriana deu excelentes resultados com Rosemary. Seu comportamento melhorou, ela ficou calma e, pela primeira vez na vida, sentiu-se confiante e bem-sucedida. Na escola, recebia metas que realmente era capaz de cumprir — e era parabenizada por cada avanço. Coisas simples como preparar corretamente a mesa antes de uma refeição. Rosie sentiu-se feliz naquele lugar em que, dentro de suas possibilidades, era uma campeã — longe da competitividade injusta com seus irmãos e a pressão dos pais pela perfeição.
Mas esse idílio teve período curto. Por culpa de Hitler. Com o início da Segunda Guerra Mundial na Europa, os Kennedy mandaram todos os filhos de volta aos Estados Unidos em 1939. Era o começo do fim para Rosemary.
Com o pai ainda em solo britânico, a mãe não conseguia lidar sozinha com as oscilações de Rosie. Tanto que recorreu à lorota pura e simples para se ver livre dela: convenceu amigas, donas de um acampamento para crianças, de que a filha — já uma mulher adulta — seria uma ótima instrutora. As mulheres não tinham por que duvidar de uma dama da alta sociedade, e admitiram Rosie em seu quadro de monitoras. E aí, claro, não precisaram de mais que um dia para concluir o óbvio: a jovem não tinha a menor capacidade para a função. Pior, com suas escapadas noturnas, acabava dando mais trabalho no acampamento que as próprias crianças. Quando as administradoras reclamaram com Rose Kennedy, expondo a situação, a resposta da mãe de Rosie ao telefone se resumiu a um desinteressado “que pena...”.
Após esse episódio, Rosemary foi mandada a outro colégio interno de elite, religioso, um lugar inapropriado para alguém com suas necessidades específicas. E aí o bom comportamento desenvolvido na Inglaterra teve retrocesso: a moça infernizava a rotina das freiras com desobediência e fugas noturnas para buscar diversão na cidade. Sua mãe ficou tão inconformada com os relatos das religiosas que tentou — sem sucesso — interná-la num hospital psiquiátrico. Era o que muita gente fazia com filhos rebeldes e “inconvenientes”. A internação só não foi para a frente porque Joe Kennedy já tinha outros planos para a filha. Sua paranoia de que ela acabasse grávida de pai desconhecido fez com que ele comprasse a ideia de uma excentricidade muito em voga na época — mesmo que a Associação Médica Americana afirmasse que a lobotomia ainda era excessivamente experimental para que fosse aplicada em seres humanos.
GAROTA INTERROMPIDA
Escondido da esposa, Joseph Kennedy levou a filha de 23 anos aos cuidados de Walter Freeman, o maior propagador da lobotomia nos Estados Unidos. Ele havia lido uma grande matéria no jornal Saturday Evening Post em que Freeman e seu parceiro de pesquisa, James W. Watts, falavam de como sua medicina pioneira era capaz de recuperar pacientes com as mais diversas patologias mentais e psicológicas, devolvendo a eles uma vida plena e independente. Vale dizer que, se aos olhos de hoje isso é um completo absurdo, não era bem assim na ocasião. Esse tipo de cirurgia teve seu auge de popularidade justamente entre os anos 1930 e 1950, uma época em que a medicina psiquiátrica oferecia poucos recursos além da psicoterapia — ineficiente para quem procurava soluções vapt-vupt —, eletrochoques ou convulsões induzidas por medicação.
Em novembro de 1941, Rosemary Kennedy foi submetida ao procedimento. Watts posteriormente descreveria como foi o processo: “Perfuramos no topo da cabeça, Rosemary estava acordada durante toda a cirurgia, sob efeito de um tranquilizante. Eu comecei fazendo uma incisão no cérebro através do crânio. Era pequena, não mais que uma polegada.” Ele ia cortando o tecido cerebral de Rosie com movimentos para cima e para baixo, e o doutor Freeman ia pedindo que a moça recitasse algo ou cantasse uma canção que ela conhecia, ou contasse de trás para a frente, para ver até que ponto deveria continuar com a perfuração. Quando ela começou a ficar incoerente, sem entender mais os pedidos, eles pararam de furar sua cabeça.
O resultado foi trágico. Rosemary Kennedy saiu da operação tendo perdido toda a sua capacidade mental, a fala e os movimentos. Não conseguia nem mais controlar xixi e cocô. Virou um zumbi. Para sempre.
Ainda que a técnica experimental estivesse na moda, é espantoso que uma família tão poderosa quanto os Kennedy não procurasse outros caminhos para lidar com uma garota rebelde e imatura, que se comportava como uma adolescente. Tinham, inclusive, a possibilidade de mantê-la em casa, sob supervisão. “Eles tinham mais dinheiro que Deus”, comenta Kate Clifford Larson, autora do livro Rosemary - A Filha Escondida dos Kennedy. “Podiam ter usado esse dinheiro de tantas outras maneiras para cuidar dela, por que lobotomizá-la? Podiam, por exemplo, contratar outras moças para entretê-la, para que seus dias fossem divertidos e cheios de vida, mas preferiram sumir com ela.”
Se já achavam seu comportamento errático uma mácula para o clã dos Kennedy, Joe e Rose não quiseram nem considerar a hipótese de manter a mulher lobotomizada, sua filha, no ambiente da família. Imediatamente internaram-na num hospital psiquiátrico, onde ela permaneceria por sete anos, e depois mandaram-na para a instituição católica de Wisconsin, na qual Rosie ficou escondida do olhar público pelas próximas seis décadas, até morrer de causas naturais, aos 86 anos.
Durante um bom tempo, ela ficou isolada da família também. Sua mãe passou 20 anos sem visitá-la. O pai nunca mais teve qualquer contato com ela — como se um encontro pudesse reacender um sentimento de culpa. Aliás, os irmãos amorosos, no começo, ficaram surpresos com aquela ausência prolongada da irmã. O senador Ted Kennedy escreveu em suas memórias que tinha 9 anos quando Rosie desapareceu. Como os pais lhe disseram para nunca perguntar por ela, o menino entendeu que precisava se comportar exemplarmente, ou podia “desaparecer” também.
“A lobotomia de Rosemary foi uma divisória emocional na história da família”, afirma Laurence Leamer, autor de The Kennedy Women: The Saga of an American Family (As mulheres Kennedy: a saga de uma família americana, sem edição brasileira). “Diferentemente de todas as mortes trágicas que aconteceram entre os Kennedy [os assassinatos de Jack e Bob, a morte de Joseph Jr. em ação na Segunda Guerra, a perda de Kathleen aos 28 num acidente de avião], nenhuma marca de patriotismo, heroísmo ou ousadia pode ser relacionada a esse ato.”
A TÉCNICA MEDIEVAL QUE GANHOU O NOBEL
No que talvez seja o maior arrependimento do Instituto Karolinska — a universidade sueca que escolhe os vencedores anuais — o Prêmio Nobel de Medicina de 1949 foi entregue ao neurologista português António Egas Moniz “pela descoberta do valor terapêutico da leucotomia em cortas psicoses”. Leucotomia era o nome original da lobotomia. O engano, portanto, não foi exclusividade dos pais de Rosemary Kennedy. A perspectiva convencional na época era de que doenças mentais tinham a ver com alguma enfermidade física do cérebro (uma visão diferente da atual, que entende os distúrbios psiquiátricos como algo impossível de ser tratado com bisturi).
Nos EUA, Walter Freeman virou um médico-celebridade por causa da lobotomia. Ficou famoso pelo método de martelar um picador de gelo sobre o globo ocular do paciente, crânio adentro, até separar as vias que ligam os lobos frontais a outras regiões do cérebro. O cirurgião tinha até um “lobotomóvel”, que usava para viajar pelo país, divulgando suas técnicas. O português Moniz defendia que ela só deveria ser aplicada em pacientes muito violentos ou em suicidas. Freeman aumentou a abrangência, prometendo curar também a hiperatividade e a ansiedade. Chegou a praticar até em crianças malcomportadas. Só não contava aos clientes que, apesar de alguns casos bem-sucedidos, havia os muitos que ficavam com deficiências graves para o resto da vida, ou até morriam na intervenção. Cerca de 50 mil americanos foram lobotomizados entre 1936 e os anos 1970. Se fosse uma mulher dos nossos tempos, Rosemary não correria o risco de sofrer essa violência — assim como pacientes bipolares, depressivos, hiperativos ou crianças desobedientes: a lobotomia foi substituída por remédios tarja preta. E a técnica que vitimou a filha escondida dos Kennedy hoje é considerada um dos capítulos mais abomináveis e cruéis da história da psiquiatria.
Fonte: Aventuras na história - EDIÇÃO 199, DEZEMBRO 2019
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