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Homem biónico

por Lerparaver

Revista Amanhã Economia e Negócios Edição 170 - Setembro de 2001

John Hockenberry

O que significa ser um humano? Mais: o que é "parecer" humano? Sério: essas questões se tornam cada vez mais abertas ao debate quando se contemplam as novas e extraordinárias tecnologias para auxiliar pessoas deficientes a ter uma vida melhor. Com o advento dos dispositivos wireless, a internalização ide aparelhos eletrônicos no corpo humano avançou tremendamente, e hoje se pode dizer que a espécie humana está na mesa de desenho de alguns projectistas bastante incomuns. E os deficientes físicos, que há anos já vêm-se amparando em tecnologias específicas para interagir com o mundo ao seu redor, levam vantagem nesse novo cenário.

Por isso, de agora em diante, quando você pensar em deficientes físicos, livre-se daquela visão piegas de que um milagre lhes restituiu a capacidade de andar ou proporcionou qualquer outro tipo de triunfo sobre o que o acaso lhes impôs. As novas técnicas que estão em desenvolvimento chegam a ser comparadas com a arte do teatro de bonecos. Já ficou maravilhado ao observar alguém dando vida a um simples marionete? Então, você está próximo da visão que alguns técnicos têm das tecnologias de amparo a deficientes como uma ponte entre realidades diferentes, um meio de interacção entre o cérebro e o mundo ao seu redor.

Fazer com que o corpo trabalhe apesar de alguma deficiência existente é uma tarefa dura que não desejo para ninguém - e sei muito bem o que é isso, pois vivo há anos em uma cadeira de rodas e já possuo várias partes móveis.

Melhorar as condições do deficiente é como descobrir uma plataforma alternativa de funcionamento para o cérebro, já que ele não dispõe mais do corpo que controlava antes da deficiência física. A boa notícia é que, hoje, dentro de cada classe de deficiência, há diferentes soluções, pessoas e tecnologias interagindo para resolver vários problemas de movimentação ou comunicação. O objectivo, sempre, é projectar um ser humano completo e ver o fantoche humano como um personagem em si e não um simples boneco. Por isso, quando pensar em mim, pense em cadeira de roda, plataforma alternativa e fantoche.

Questão filosófica - É difícil encarar Johnny Ray aprisionado em seu próprio corpo. Músico amador de 63 anos, sofreu uma isquemia cerebral em 1997 que o deixou praticamente impossibilitado de mover qualquer parte do corpo. Sua mente, entretanto, continua intacta, mas ele não pode fazer nenhum movimento para se comunicar com o mundo ao seu redor. Fazer com que esse fantoche sem partes móveis volte a produzir sons é uma tarefa difícil, mas um grupo pioneiro de neurocientistas da Universidade de Atlanta, EUA, obteve consideráveis avanços. A partir de uma série de experiências com animais e seres humanos, ainda em 1990, Philip Kennedy, Roy Bakay e uma equipe de pesquisadores criaram uma interface alternativa básica, mas completamente funcional, usando eléctrodos cirurgicamente implantados no cérebro. Em 1996, o sucesso dos testes com primatas convenceu o governo americano a liberar experiências em pessoas. O primeiro voluntário, cujo nome é mantido em sigilo, foi uma mulher em estágio terminal da doença conhecida como mal de Lou Gehrig. Ela faleceu dois meses após os procedimentos. O segundo voluntário é Johnny Ray.

Kennedy, que desenvolveu a técnica de "implante subcranial cortical", utilizado nessas operações, desejava criar um dispositivo que pudesse captar sinais internos do cérebro - algum sinal forte o suficiente para viajar por fios e manipular objectos no mundo físico. Bakay atualmente trabalha em Chicago, onde integra um instituto devotado inteiramente a interfaces alternativas cérebro-corpo. Esse médico de fala mansa descreve seu próprio trabalho como um espectáculo, mas, para mim, ele soa mais como o personagem de Keanu Reeves em Matrix: "Simplesmente, fazemos um buraco no crânio logo acima da orelha, próximo da parte posterior final do córtex motor, fixamos nossos eléctrodos no osso para que não se desloquem e esperamos por um sinal".

Misturado fisicamente ao tecido cerebral, o implante é um híbrido curioso de electrónica e ciência biológica. "Usamos um pequeno pedaço de vidro com duas cavidades estreitas nas quais são fixados contactos eléctricos de ouro," continua Bakay. O espaço nos cones é preenchido por um tecido especial antes que tudo seja implantado no córtex motor." Esse tecido especial foi desenvolvido para atrair células do cérebro que crescem em torno do contato.

Quando as células entram em contacto com o ouro, a actividade eléctrica de cada uma delas é detectada pelo eléctrodo. Fios de ouro carregam os sinais para fora do crânio, onde são amplificados.

"Já ficou maravilhado ao observar alguém dando vida a um marionete? Então, você está próximo da visão que muitos técnicos têm das tecnologias de amparo como um meio de interacção entre o cérebro e o mundo ao seu redor" O paciente é encorajado a ter pensamentos distintos, como frio/quente, em cima/embaixo. Gradualmente, os médicos extraem e codificam os padrões eléctricos que mudam conforme o pensamento do paciente. Se um paciente pode reproduzir e controlar um sinal utilizando os mesmos padrões, aquele sinal pode ser reconhecido e usado no controle de, digamos, um cursor na tela do computador. A técnica ainda é incipiente, mas o que de fato Bakay e seus colegas demonstraram foi uma alternativa de comunicação entre o cérebro e o corpo.

O implante de Ray foi efectuado em 1998, e ele sobreviveu aos primeiros testes com sinais amplificados e convertidos no computador. Nos testes que se seguiram, pediu-se a Ray que pensasse sobre movimentos físicos específicos - dos braços, por exemplo. Kennedy e Bakay isolaram o sinal correspondente e o programaram para mover um cursor. Reproduzindo o mesmo padrão cerebral, Ray finalmente conseguiu mover o cursor e escolher ícones na tela do computador, soletrar palavras e até gerar notas musicais.

Que essa é de fato uma plataforma alternativa, uma verdadeira interface cérebro-máquina, só ficou demonstrado após meses de testes, quando Ray informou que os pensamentos que utilizava para activar os eléctrodos - movimentos imaginários do braço - estavam mudando. Ele já estava ativando os eléctrodos pensando em movimentos faciais. Ao manipular o cursor, os médicos notaram movimentos subtis no seu rosto. Os resultados demonstram que os movimentos pensados por Ray estavam accionando neurónios motores. Como?

Kennedy e Bakay presumem que o implante tenha colocado novamente em acção, no cérebro de Ray, vários centros motores. Desconectados do corpo que outrora controlavam, esses neurônios encontraram agora uma maneira elementar de interagir. Adaptando-se à nova plataforma, o cérebro de Ray estava demonstrando um padrão de flexibilidade comparável às linguagens Java e Linux. À medida que as células ao redor do implante de Ray executavam o que ele comandava, a necessidade de imaginar os movimentos de seu corpo gradualmente foi desaparecendo. Um dia, quando sua habilidade em movimentar o cursor parecia particularmente acurada, os médicos perguntaram a Ray sobre o que estava pensando. Lentamente, ele digitou "nada".

Ray estava interagindo directamente com o cursor de uma maneira muito semelhante à que, tempos atrás, sua mão interagia com o mundo. "As pessoas não pensam 'mover a mão' antes de movimentá-la, a menos que sejam crianças nas primeiras fases de aprendizado. Por fim, o cérebro vai eliminando esse estágio preliminar até que a mão seja um prolongamento do cérebro", explica Bakay. O fato levantou uma questão filosófica importante: devido ao implante, os componentes do computador são significativamente mais importantes que os próprios braços paralisados. Assim, a tecnologia pertencente à indústria de informática é apenas parte do corpo de alguém ou esse corpo é apenas mais um aplicativo de tal tecnologia? De qualquer forma, o governo americano está bastante interessado nessas pesquisas e já liberou US$ 1,1 milhão para custear testes em mais oito pacientes até o final do ano. Bakay espera encontrar pacientes com deficiência física em um grau menor que os dois primeiros. "Se observarmos um número Maior de aplicações diferenciadas, aprenderemos muito mais," continua Bakay.

"Consegui provocar um pequeno movimento apenas com a minha mente. Comecei a chorar, é claro, pois era a primeira vez que isso acontecia após o acidente" Arsenal de máquinas - A vida, hoje, para mim, é uma questão de optimizar a interface cérebro-máquina. Mas, no início, isso não me pareceu óbvio.

Fracturei minha coluna vertebral em um acidente de carro quando tinha 19 anos - uma daquelas coincidências do destino que fez com que a mesma mulher que parou para me dar carona dormisse na direcção enquanto eu ainda estava no carro com ela. Após o acidente, as palavras de ordem na recuperação eram coragem, paciência e reabilitação, mas nenhuma delas representa fielmente o reaprendizado da vida física. Desde então, tenho improvisado movimentos fazendo uso das funções corporais ainda disponíveis combinadas a um verdadeiro arsenal de máquinas adaptadas para mim: cadeira de rodas, agarradores, telefone sem fio, controle remoto etc. Em várias e diferentes situações, reconheci minha luta como um músico buscando a virtuosidade ou um atleta, a perfeição. Percebi que o desenvolvimento da motricidade fina e acurada pela prática do movimento associado a instrumentos é algo tão antigo quanto a humanidade em si. Observando minhas filhas aprenderem a andar, concluí que é um processo idêntico aos das crianças desenvolvendo coordenação motora diante da funcionalidade quase nula das pernas, dos braços e dos músculos. Engenheiros e projectistas descobriram que esse processo é também algo característico de cada um, que cada pessoa resolve seus problemas a sua maneira, com uma mistura de tecnologia e improvisação corporal. São variáveis culturais e psicológicas, cujos resultados são difíceis de prever, mas são determinantes quanto ao tipo de tecnologia que funcionará com uma pessoa e não com outra.

Jim Jatich é uma espécie de homem biônico e se orgulha disso. Ex-engenheiro de 53 anos, ele é um quadriplégico que doou seu corpo à ciência pela primeira vez, em 1978, logo após o acidente que o deixou sem movimento nas pernas e mãos. Seus médicos tentaram instalar uma ligação alternativa em torno da fratura, restaurando a rede local controlada pelo cérebro. Em 1986, foi o primeiro ser humano a receber cirurgicamente eléctrodos que, implantados nas suas mãos, eram os responsáveis pela estimulação funcional eléctrica dos nervos e, consequentemente, dos músculos. Comandando um joystick em seu ombro, ele consegue abrir e fechar as mãos. Outros utilizam a tecnologia para mover as pernas ou exercitar membros paralisados.

Dois anos antes, um pesquisador assistente chamado Richard Lauer sugeriu a Jatich a idéia de implantar eléctrodos directamente no cérebro. Foram implantados em uma única cápsula 64 deles, produzindo imagens das ondas cerebrais do paciente. O treinamento a que Jatich se submeteu foi muito semelhante ao de Ray, e um padrão de onda foi seleccionado para funcionar como um interruptor: acima dele, os estímulos eléctricos são ligados; abaixo dele, desligados. Jatich salienta que o equipamento não tinha nada de portátil, e que um simples telefone celular poderia, de uma hora para outra, desligar os eléctrodos, mas o empreendimento trouxe um resultado que ninguém esperava. "Aconteceu logo após as primeiras experiências. Consegui provocar um pequeno movimento apenas com a minha mente. Comecei a chorar, é claro, pois era a primeira vez que isso acontecia após o acidente." "A vida, para mim, é uma questão de optimizar a interface cérebro-máquina" Dos dispositivos de controle manual até os implantes cerebrais que assumem o papel da espinha dorsal em relação aos movimentos do corpo, demos um passo significativo - segundo o professor de Ortopedia e Engenharia Biomédica Ron Triolo, trata-se de uma verdadeira promessa para aqueles que sofrem de alguma deficiência física. Os desafios são grandes, mas, conforme ele mesmo diz, "o fracasso está mais próximo do sucesso que a omissão. Tenho testemunhado alguns dos impressionantes estudos preliminares sobre controle cortical e acredito que eles trarão resultados concretos".

Desde que Jatich sofreu o primeiro implante na mão, a tecnologia da estimulação eléctrica dos nervos avançou ao ponto em que eléctrodos confiáveis e duradouros implantados em ambas as mãos são praticamente imperceptíveis e requerem manutenção mínima, tornando-se partes permanentes do corpo. Durante os últimos anos, Jatich passou da total dependência dos outros para a reconquista de uma certa autonomia que o permite utilizar um computador e alimentar a si próprio, entre outras tarefas simples. Há pouco tempo, conseguiu fazer pequenos desenhos mecânicos com a ajuda de um dispositivo normalmente comercializado para o auxílio de desenvolvimento de sistemas.

Atualmente, ele está bastante envolvido com o próximo passo - um implante que permita a conexão de seu cérebro, via computador, com os eléctrodos implantados nas mãos. Ele fala disso como se comentasse acerca de um projecto de feira de ciências, não sobre mais uma intervenção em seu crânio. "Sei que tenho de considerar muito bem a questão, mas, se os médicos puderem cumprir suas promessas, será maravilhoso. Eu o faria imediatamente." Um chip no professor - E, de repente, eis que milhões de dólares vêm sendo aplicados na investigação de possíveis intervenções directas no cérebro.

Embora parte dessas pesquisas esteja voltada ao resgate de corpos massivamente paralisados, há também a investigação de possíveis usos alternativos dessas tecnologias em corpos saudáveis. O governo americano ainda não aprovou oficialmente essa orientação das pesquisas, mas não há nenhum impedimento real a que algum pesquisador pioneiro queira testar a adição de novas habilidades ao cérebro humano. Em Novembro, o professor inglês de Cibernética, Kevin Warwick, planeja implantar em si um chip para experimentar a emissão e a recepção de sinais.

Estimulações profundas do cérebro são a questão mais frequente entre as novas terapias neurológicas em desenvolvimento. E projectos específicos para o tratamento de disfunções graves do sistema nervoso, como o mal de Parkinson, estão em pleno andamento. Há um programa voltado ao desenvolvimento das primeiras neuropróteses - aparelhos de controle cortical, alternativa no campo da pesquisa da cura dos acidentes vertebrais e uma possiblidade de resgate da conexão cérebro-músculo. Apelidada como 'a cura' por seus Maiores entusiastas, investidores e promotores, a pesquisa de neuropróteses que restaurariam completamente as funções da coluna vertebral por meio de dispositivos de baixa frequências tem obtido verbas com Maior facilidade que as pesquisas com estimulação eléctrica e implantes no córtex cerebral, que já vêm sendo efectuadas com bastante sucesso e interesse há mais tempo. O garoto-propaganda da 'cura' é o actor Christopher Reeves; o da estimulação eléctrica, o paciente Jim Jatich; o dos implantes no córtex, Johnny Ray. Certamente, qualquer um que sofra de alguma deficiência física (ou com a deficiência de algum ente querido) deseja simplesmente uma solução para o problema, independentemente da forma. Entretanto, para eles e para mim, que tenho vivido preso a uma cadeira de rodas por 25 anos, é difícil aceitar que um tipo de pesquisa receba mais incentivo que outras.

Roy Bakay lamenta ter de competir por melhores verbas com 'a cura' e outros tipos de pesquisas mirabolantes. "Nós conseguimos resultados reais e imediatos para os pacientes, enquanto as pesquisas sobre a optimização das funções do cérebro só trarão resultados em um futuro distante. Não estou dizendo que é uma pesquisa inútil, mas que as estimulações profundas do cérebro são uma solução mais imediata para pacientes que querem voltar a interagir com o mundo ao seu redor." Christopher Reeves se acidentou quando andava a cavalo, em 1995, ficando imobilizado do pescoço para baixo, ou seja, dependente de ajuda até para respirar. Por isso mesmo, ele não espera unicamente pela 'cura' para resolver seus problemas e sempre deixou claro que apóia qualquer pesquisa que possa ajudar os deficientes físicos. Acima de tudo, o questionamento que ele ajudou a levantar representa o pensamento daqueles que consideram o corpo humano a ligação mais perfeita entre o cérebro e o mundo.

Ultimamente, o desenvolvimento de alternativas de comunicação para deficientes tem sido muito importante do ponto de vista tecnológico. Para os computadores, é mais fácil transformar o discurso falado em texto do que texto em mensagem falada. Líder na área, o pesquisador de problemas com a fala, dr. Frank DeRuyter, afirma que "os sistemas têm de ser sensíveis ao ambiente, caso contrário não funcionam". Sua experiência vai desde o uso de placas simples que permitem a pacientes incapacitados comunicarem-se apontando para letras e figuras até o uso de dispositivos electrónicos sofisticados de sintetização da fala. Por isso, pode destacar com segurança o fato de que cada alternativa tem suas vantagens e desvantagens.

"Como Pinóquio, eu quis tanto fazer parte do mundo real que deixei de ser um boneco sem vida"" Gostaria de dar o testemunho de um deficiente com quem me comuniquei por e-mail. Sofrendo de paralisia cerebral desde a infância, Michael Williams lutou a vida toda para conseguir controlar sua própria fala com terapias tradicionais e hoje utiliza tanto sintetizadores de voz quanto uma placa de alfabeto que ele afirma, com bastante humor, servir muito bem durante os apagões na Califórnia ou para registrar seus pensamentos durante o banho. Em seu caso, foi feita uma escolha tecnológica que resultou em requintes indisponíveis para aqueles que falam normalmente. Quando dá palestras (exactamente!), ele tem a opção de dez vozes, embora, em geral, utilize a que ele batizou de Grande Harry. Quando cita alguém, ele utiliza uma voz diferente... "É um recurso que utilizo para impressionar a audiência." Quando pensamos em alguém como ele, por que não lembrar de teatro de bonecos e de ventriloqüismo?

DeRuyter afirma que os projectistas têm de pensar em termos mais amplos. "Apenas começamos a perceber a importância de integrar a tecnologia de movimento com a de comunicação. Imagine, ir de cadeira de rodas até uma mercearia, e seu sintetizador automaticamente lhe oferecer as frases e ícones relacionados à situação. Uma mudança de contexto que acompanha a movimentação no espaço: é isso que o cérebro faz e que agora podemos reproduzir."

Assim, a optimização da interface máquina-cérebro tornou-se uma questão para engenheiros de empresas como Nokia, Motorola e outras do campo da tecnologia wireless. É claro que as indústrias têm interesse em que seus produtos sejam utilizados por todos, e não apenas por um grupo específico. Além disso, em geral, as pessoas, sempre que possível, desejam tecnologias que aumentem a capacidade de suas habilidades. É só pensar na febre dos telefones celulares e da internet. Como viver sem eles depois que já adaptamos nossas rotinas às vantagens que eles nos trouxeram?

DeRuyter destaca ainda que "a maneira como as pessoas se beneficiaram dessa tecnologia foi muito diferente de como os projectistas imaginavam. Por exemplo, sempre pensamos que os deficientes não se contentariam com nada menos do que o resgate pleno da capacidade que tinham antes da perda dos movimentos. Ao contrário: descobrimos que as pessoas valorizam até mesmo resgate de habilidades mínimas que permitam movimentos rudimentares, sem pensar se aquilo vai-lhes permitir voltar à vida que tinham antes do acidente".

Pense em Pinóquio - Há também fatores culturais que surpreendem e frustram os pesquisadores. Quando lançados nos anos 90, os implantes auriculares eram uma promessa de cura para muitas formas de surdez. Trata-se de um aparelho electrónico que, instalado dentro do ouvido, capta e retransmite para o cérebro ondas sonoras que, após um certo período de adaptação, podem ser reconhecidas pelo paciente. Entretanto, muitos dos possíveis interessados consideraram os implantes como mutilação física e até mesmo um programa de limpeza étnica. Muitos surdos os consideraram um desrespeito à linguagem de sinais e ao fato de que podem levar uma vida normal e integrada apoiados nas estratégias desenvolvidas por gerações de pessoas que sofreram do mesmo problema. Brenda Battat trabalha para uma organização americana de auto-ajuda para surdos e considera a oposição moderada, mas destaca que o uso da tecnologia requer um investimento emocional e de tempo que os pesquisadores parecem ignorar. "Independentemente de qualquer tecnologia, você sempre será um deficiente auditivo. Quando a bateria termina, passa-se por momentos de puro pânico. É um sentimento terrível. É preciso considerar a sensação de dependência. Todos que utilizam as tecnologias de amparo não devem supor que elas funcionarão o tempo todo, em qualquer circunstância, sem a degradação de alguma de suas capacidades em uso."

Um exemplo. O projectista Dean Kamen está trabalhando na criação de um aparelho de transporte alternativo para substituir a cadeira de rodas e que ofereça a capacidade de andar, subir escadas, ficar de pé e movimentar-se em qualquer tipo de terreno. Para tanto, o aparelho deverá ter uma placa de computador e um sistema de aviação miniaturizado que acesse o centro de gravidade do corpo e controle a velocidade dos motores. Entretanto, minha primeira impressão não foi das melhores. Fiquei pensando no que aconteceria se a coisa toda quebrasse em um lugar distante e o usuário não tivesse uma caixa de ferramentas... Por outro lado, quando Kamen começou os testes desse novo aparelho de locomoção, descobriu algo inusitado. "Todos que subiram a escada e andaram na areia, adoraram. Mas, quando ficaram novamente de pé, face a face com outra pessoa, reavivando a experiência do equilíbrio necessário para andar, começaram a chorar." Ele acredita que, apesar de ser o aparelho o responsável pela situação, todos tiveram a sensação de estarem andando novamente. "Tenho certeza de que o cérebro revive o controle do equilíbrio. Por isso, toda a emoção." O fato levantou uma questão revolucionária: seria o corpo humano apenas uma solução evolucionária para as necessidades de locomoção e comunicação? Sob esse argumento, o cérebro não teria preferência alguma por uma plataforma de funcionamento ou por outra, desde que sua funcionalidade seja preservada. Em resumo, o conjunto cérebro-corpo-máquina não parece precisar tanto do corpo quanto pensávamos.

Indo mais além, Michael Williams acredita que pessoas com problemas como os dele ajudaram a humanidade a perder o medo dos aparelhos até agora específicos para deficientes. "Os deficientes fizeram com que a aparência estranha deixasse de ser um problema. Tornamos normais algumas esquisitices tecnológicas... Ninguém mais estranha alguém que parece estar falando sozinho enquanto caminha, mas que na verdade está utilizando o plug de ouvido e microfone de seu celular. E que tal aqueles óculos de visão virtual?" Os deficientes, que durante a história da humanidade ou morreram ou simplesmente foram abandonados à morte, conseguem hoje, graças a tecnologia médica, levar uma vida quase normal e, com isso, alargaram bastante o conceito de humanidade. A história da tecnologia de amparo aos deficientes comprova que sacrificamos nossa aparência em prol da ampliação das nossas capacidades motoras e comunicativas.

Para os que se abriram para o questionamento, a definição do que é humano já envolve uma série de híbridos tecnobiológicos, dentre os quais eu sou apenas um exemplo. A última promessa dessas pesquisas é aumentar as capacidades -visão, audição, força - dos corpos em pleno funcionamento. Não há nada que indique que isso é impossível. De fato, de uma maneira subtil, mas significativa, isso já começou. A fusão máquina-corpo humano é um tema que prenuncia a era digital. Certa vez, encontrei, no Zaire, um jovem com o mesmo problema que o meu. Ele se aproximou, maravilhado com minha cadeira de rodas, para mostrar-me a solução que ele havia desenvolvido dentro de suas condições, um misto de cadeira de rodas, bicicleta e charrete. Obviamente, não falávamos a mesma língua, mas ele reconheceu a integração corpo-cadeira que havia em mim, fato que passa muitas vezes despercebido por aqueles que apenas têm olhos para a tragédia que me deixou assim. Objectivamente, meu antigo corpo não existe mais, sou parte da cadeira e tenho inclusive capacidades que excedem minhas especificações originais.

No meu caso, a reconquista da independência, com a colaboração de máquina, corpo e cérebro, trouxe uma importante mensagem difícil de fazer entender. Eu mesmo levei tempo para compreendê-la. Com o passar do tempo, conscientizei-me da pouca falta que me fazem minhas antigas habilidades. Por anos, pensei que fosse um truque psicológico para evitar uma depressão causada pelos danos irreversíveis, mas o que de fato aconteceu é um fenómeno muito mais interessante. Meu cérebro remapeou minhas funções físicas de acordo com o que me restou de mobilidade corporal, com as ferramentas de que faço uso e com estratégias de movimento reconfiguradas. Como Pinóquio, quis tanto fazer parte do mundo real que deixei de ser um boneco sem vida. E se Pinóquio se adaptou tão bem ao mundo real que passou a ser visto como um menino, há uma mensagem subliminar nessa fábula: os humanos igualmente não se diferenciavam do boneco de madeira. Não estou mentindo. Pense no Pinóquio e lembre-se de meninos de verdade.