este é um texto de um grande amigo, que partilho aqui.
De quem é a Culpa?
Quando perguntado sobre sua composição preferida, ouvi uma curiosa declaração do cantor e compositor Brasileiro Oswaldo Montenegro:
Para mim todas as músicas que fiz são iguais, mas há algumas mais iguais que as outras.
Estranha e contraditória resposta. Talvez ela nos pareça estranha justamente porque não sabemos lidar com Contradições. A despeito dessa dificuldade, eu entendo que há contradições e contradições. Posso chegar ao nível de parafrasear o cantor dizendo:
Todas as contradições são iguais, mas há algumas mais iguais que as outras.
Por esse motivo, quero compartilhar com você, querido leitor, duas dessas contradições que ocorreram comigo e que são inaceitáveis.
Além de falar de contradições, quero tocar no delicado tema da igualdade e da diferença. Para isso, trago um pensamento da grande educadora Brasileira, Professora Maria Tereza Egler Mantoan.
há diferenças e há igualdades, e nem tudo deve ser igual nem tudo deve ser diferente, [...] é preciso que tenhamos o direito de ser diferente quando a igualdade nos descaracteriza e o direito de ser iguais quando a diferença nos inferioriza
Mas onde é que eu quero chegar com isto tudo? Peço para que você leia um pouco mais para me entender. Antes, quero dizer que detesto me fazer de vítima. Não sou vítima de nada. O fato de ser deficiente visual, e por isto enfrentar determinadas situações de forma diferente de quem enxerga não me da o direito de me sentir vítima de nada. Pelo contrário. Tenho orgulho de ser cego. Superei muitas barreiras e deixei de superar outras tantas. Hoje, sou docente da UNESP de Ilha Solteira, Doutor em Educação pela UNICAMP, Pós-doutor e licenciado em física pela UNESP de Bauru. Escrevi três livros e uma série de artigos científicos publicados nas mais renomadas revistas nacionais e internacionais da área do ensino. Quer dizer, eu sou uma pessoa comum e com discernimento e condições intelectuais para tomar decisões e assumir suas concequencias.
Agora, quero contar dois fatos que aconteceram comigo, um no ano de 2009 e outro nessa última eleição para prefeito e vereador ocorrida no dia sete de outubro de 2012.
No ano de 2009, após uma caminhada na pista de atletismo da cidade de Ilha Solteira, cidade que resido há seis anos, voltava para casa, quando de repente, não mais que de repente, despenquei num buraco cavado pela prefeitura na calçada para concertar o encanamento da rua. Eu tive a sorte de ter leves arranhões e a roupa toda rasgada. Mas nada além disso. Para que você tenha idéia da fundura do buraco, quando fiquei em pé em seu interior, minha testa nivelava com a calçada, ou seja, o buraco tinha um metro e oitenta centímetros de profundidade. Tomei a decisão de ficar quieto e não levar o assunto para a justiça. Eu poderia ficar com deficiência física como decorrência daquele acidente.
Ainda sobre este tema, ouvi uma vez uma curiosa fala de uma pessoa que estivera nos Estados Unidos. Estava surpreendida com a quantidade de cegos e caddeirantes que andavam pela rua. Disse-me então:
Como nos Estados Unidos tem cegos e cadeirantes, no Brasil não tem isto tudo!
Então respondi a ela:
Tem sim, é que no Brasil essas pessoas raramente saem de suas casas por medo e protecionismo dos pais. No Brasil, o que temos aos montes nas ruas e calçadas são buracos e não cegos e cadeirantes. É somente uma questão de prioridade.
No dia sete de outubro de 2012 ocorreu algo comigo que é inaceitável. Para que você entenda, tente-se colocar na situação de uma pessoa cega. Antes, vamos recordar como é que se vota na urna eletrônica. Você chega à zona eleitoral, entrega seus documentos ao mesário que libera a urna para que você realize o voto. Nesse momento, aparece na tela da urna a categoria do voto, vereador ou prefeito. Você, ciente de que voto vai realizar, digita os números, aparece então à foto e o número do candidato, e se tudo estiver correto, você pressiona a tecla confirma. Depois, você da sequencia votando no outro candidato. Para o cego não é assim, pois, ele não vê nem a categoria do voto nem a foto e o nome do candidato.
Para corrigir essa falta de acessibilidade, recentemente as urnas eletrônicas vieram munidas de um dispositivo com voz. Assim, o deficiente visual, para votar, leva seu fone de ouvido, coloca na saída de áudio da urna, e a urna fala a categoria do voto, bem como, o nome e partido do candidato. Depois, com certeza de que as informações estão corretas, o deficiente visual pressiona a tecla confirma. Lembre-se que todas as teclas vem com descrição em Braille.
Minha indignação é a seguinte: Quando fui votar, levei meu fone de ouvido. Os mesários autorizaram o voto, mas quando pressionei as teclas, o som não saiu. Comuniquei isso a eles, que tentaram apertar daqui e dali, mas nada do som sair. Decidi então que realizaria o voto sem o som mesmo, já que sabia a posição das teclas na urna e os números de meus candidatos de cabeça. Ai é que vem o problema. Eu cometi um erro ao votar. Confundi-me com a ordem dos candidatos. Pensei que o primeiro voto deveria ser para prefeito e o segundo para vereador. Assim, digitei dois números e confirmei. Durante este processo, disse em voz auta: já votei para prefeito. Então, com voz de espanto, Eles me disseram que o primeiro voto deveria ser para vereador. Ocorre que eu já havia votado e de forma errada.
De quem é a culpa? Se eu enxergasse, veria na tela antes do voto a mensagem: para vereador, e não cometeria o erro. Como sou cego, o som do dispositivo falante da urna é quem deveria me dar esta informação. Os mesários poderiam me avisar? A culpa foi deles? Foi da urna que não funcionou? A culpa deve ter sido minha mesmo. Pessoas como eu não tem o direito de errar. Na situação que descrevi, A tecla corrige não tem funcionalidade alguma. Pessoas como eu Tem que andar com tudo guardado na cabeça, não podemos dar ao luxo de nos esquecermos de nada, não há indicações acessíveis, não há calçadas acessíveis, ruas acessíveis, livros acessíveis, panfletos acessíveis, escolas acessíveis, urnas acessíveis etc. Será que vamos chegar ao ponto de concluirmos que o erro é o da existência da cegueira?
Como escrito no pensamento da Professora Mantoan, há igualdades e diferenças. Neste caso não é a igualdade que deve balizar o direito pleno que tenho de votar. Eu precisava de um tratamento diferente. A diretriz da igualdade me fez votar de forma equivocada.
Isto é tão sério que nunca tive certeza de meus votos desde quando a votação passou a ser eletrônica, afinal, eu nunca vi a foto do meu candidato na tela, e este dispositivo da urna falante é recente.
Diferentemente do caso do buraco, dessa vez vou procurar denunciar este erro. Senti-me lesado como cidadão Brasileiro.
Infelizmente, a vida vem me ensinando que no Brasil todos são iguais, mas alguns são mais iguais que os outros.
Eder Pires de Camargo
Professor do Departamento de Física e Química da Faculdade de Engenharia da UNESP de Ilha Solteira
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