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O Blog do Sportinguista - blog de Jorge Patrício

A Bengala como símbolo e auxiliar

por Jorge Patrício

A Bengala como símbolo e auxiliar

Já na Antiguidade as pessoas cegas usavam a bengala como auxiliar de orientação e como apoio. Por isso ela em breve se tornou uma espécie de braço prolongado do não-vidente. Quando o trânsito automóvel começou a constituir um perigo para este, a bengala teve de se transformar num sinal: «Cuidado! Vem aí alguém que não te vê!»
E para que o cego pudesse ser notado a tempo, era preciso começar por tornar a bengala mais visível: passou a ser branca. Quem teve essa ideia de longo alcance foi a condessa Guilly Herbemont, que em 1931 perante entidades públicas em Paris presenteou pessoas cegas com 100 bengalas brancas. A bengala branca transformou-se no distintivo dos cegos, não tardando a assumir a função de sinal de trânsito protector para maior segurança destes enquanto peões.
Do bastão à bengala comprida
O bastão não passou ainda totalmente de moda, uma vez que as pessoas idosas precisam dele para se apoiarem enquanto caminham. Também a bengala branca curta ainda tem amigos entre os cegos e os grandes deficientes visuais, mas em geral só se tira do bolso em situações críticas ou como distintivo.
O verdadeiro auxiliar da mobilidade é a bengala branca comprida. O seu comprimento depende da altura do utilizador: assente verticalmente no chão, deve dar-lhe aproximadamente pelo esterno. Durante a marcha é segura inclinada para baixo à frente do corpo, a fim de tactear o caminho. Movimentando-a como um pêndulo para a esquerda e para a direita o seu utilizador dá sempre o passo seguinte com segurança.
No entanto, a marcha com este «detector de obstáculos» tem de ser bem aprendida e treinada. Há quase 40 anos que os cegos e amblíopes podem frequentar aulas de orientação e mobilidade, ministradas por técnicos de reabilitação com formação específica.
Nem só a bengala facilita a mobilidade
O grau de autonomia que a pessoa cega ou amblíope precisa adquirir, bem como as suas capacidades e aptidões pessoais, determinam o programa do curso. Assim, enquanto a um sujeito basta orientar-se dentro da própria casa, outro tem de usar a bengala para ir às compras ou para atravessar cruzamentos movimentados em grandes cidades. Em todos estes casos é importante manusear a bengala de harmonia com a situação e com segurança. Se o reabilitando não possuir conhecimentos prévios suficientes sobre a arquitectura da cidade e a estrutura do trânsito, eles têm de lhe ser transmitidos, pois só assim chegará a uma mobilidade confiante e eficiente com atitudes adequadas.
Para que este objectivo seja atingido, o ensino é sempre individual. Comporta em regra cerca de 100 aulas. Factores como a idade, a experiência prévia, o tipo da deficiência (cegueira congénita ou tardia, total ou baixa visão), a necessidade, a constituição psíquica e física, a actividade profissional e muitos outros podem alterar o número de aulas para mais ou para menos. A par das diversas técnicas de bengala são ensinados requisitos básicos para a mobilidade, a saber: percepção do corpo, noção de tempo, concepção espacial (elaboração de um «mapa mental»), bem como o relacionamento com os demais transeuntes, designadamente como pedir informações.
Quando falta o sentido da visão, urge estimular de forma especial os outros sentidos, pois mesmo sem a possibilidade de ver tem de ser percepcionado e correctamente interpretado o maior número possível de informações do ambiente circundante a fim de, a partir daí, ser estudado o modo como o cego ou deficiente visual deve agir enquanto transeunte, de acordo com a situação.
Bengala e concentração
Ao atravessar uma rua, por exemplo, as pessoas cegas e de visão reduzida têm de se concentrar imenso para poderem perceber e avaliar a situação do trânsito através dos sons. Ruídos diversos vindos de várias direcções e transeuntes «silenciosos» como ciclistas e «skaters» tornam-lhes ainda mais difícil adquirir a necessária segurança para atravessar a faixa de rodagem. Muitos deficientes visuais assinalam esta fase da espera puxando a bengala para si ou colocando-a direita à sua frente.
A introdução de semáforos sonoros veio facilitar muito a travessia das ruas: o cego pode reconhecer com precisão e clareza quando está verde para peões. Na ausência destes semáforos ele é forçado a deduzir essa informação com base no fluir do trânsito. Mesmo quando guiado pelo seu cão tem de lhe dar sinal para atravessar, pois os cães são cegos a cores e portanto não reconhecem o sinal verde.
Bengala com pilhas ou um auxiliar de quatro patas?
Existem diversas saídas para compensar os inconvenientes da bengala. O maior de todos é que com ela o cego não se apercebe de obstáculos situados à altura da cabeça. Existem diversos aparelhos electrónicos acessórios que detectam e indicam esse tipo de obstáculos, quer emitindo sons, quer vibrando. Mas devem ser vistos sempre apenas como complementos, e não como substitutos, da bengala. O mesmo não pode dizer-se, porém, do auxiliar de quatro patas. Após uma aprendizagem minuciosa seguida de treino com os futuros donos, os cães-guia para cegos levam-nos com segurança por entre o trânsito citadino, contornando obstáculos, indicando-lhes a berma do passeio e facilitando-lhes a travessia tantas vezes perigosa das ruas. Não é indispensável usarem também a bengala, embora essa prática seja recomendável.

Bengala e leitura do jornal
A lei define como cego não só aquele que não vê absolutamente nada, mas também toda a pessoa cuja acuidade visual no melhor olho não vai além dos 2% ou cujo campo de visão está reduzido a 5 graus ou menos (a chamada visão tubular). Considera-se de baixa visão toda a pessoa que no melhor olho vê no máximo 0,05 isto é 5%.
Pode perfeitamente acontecer que um indivíduo que tenha um campo de visão pequeníssimo ou que sofra de cegueira nocturna seja incapaz de se orientar sozinho quando anda na rua sem bengala, e contudo consiga ler letras grandes de jornal dentro do seu raio de visão.

Ajudar ou não ajudar?
As pessoas cegas e de visão reduzida que viajam sem acompanhante desembaraçam-se geralmente sozinhas. Em situações difíceis, porém, aceitarão de bom grado ofertas de ajuda por exemplo quando querem atravessar ruas, apanhar meios de transporte, em estações dos caminhos-de-ferro ou em pavimentos onde decorrem obras.
A pergunta «Quer ajuda?» nunca é incorrecta. Pelo contrário, qualquer cego ou amblíope ficará confuso e descontente se o atravessarem pegando-lhe pelo braço e puxando-o, sem uma palavra. Conta-se que por causa deste procedimento já houve quem fosse metido num eléctrico em que não queria viajar.

Efeméride
Em 15 de Outubro comemora-se em todo o mundo o dia da bengala branca. Em 1964 Johnson, então presidente dos Estados Unidos, entregou bengalas brancas a pessoas cegas. Foi o começo simbólico da aprendizagem sistemática de orientação e mobilidade por parte destas pessoas.

Comentários

Este é o melhor artigo que já li do LERPARAVER e que merece algumas considerações.
Sou cego total e não tive grandes compexos com a bengala branca, que para mim representou um passo decisivo para a minha independência, mesmo que ela não seja total e esteja condicionada pela minha surdez.
No entanto, não deixa de ser reconhecível o papel que a bengala tem nas nossas vidas, quer para nos desemaraçarmos de obstáculos, quer para ganharmos auto-estima e confiança em nós próprios.

Marco Poeta

Para mim, a bengala é símbolo de liberdade e de possibilidade de sermos o menos dependentes possível.
A bengala é uma extensão do nosso braço que alcança os objectos inferiores a tempo de tomarmos a decisão correcta.
É mais triste estarmos sempre a ser agarrados pelos outros ou ficarmos retidos em casa, numa redoma de vidro.
Mesmo com limitações auditivas não deixa de ser importante deslocar-me sozinho por sítio menos perigosos e que me são já familiares.
Confidencio-vos que me sinto profundamente incomodado quando dizem que basta segurar o braço do guia e dobrar a bengala. Porque acontece que as pessoas (até mesmo familiares e amigos) se esquecem de pequenos obstáculos e não estamos a orientar-nos pelo cotovelo 8que é insuficiente sem a bengala) e depois pumba! ou tropeçamos ou nos estatelamos ao comprido...

Marco Poeta

A bengala não é nada do outro mundo, mas sim como qualquer técnica de apoio.
A nossa dignidade está toda centrada na nossa capacidade de vencer dificuldades que nos tornam sábios e dignos de respeito e nunca de piedade.
Somos seres humanos exactamente porque temos projectos de vida que são o motivo pelo qual tudo o que está ao nosso alcance é válido para a nossa auto-realização, incluindo a bengala branca como auxiliar do nosso percurso e sucesso.
A bengala não é um simples acessório à nossa independência, mas um objecto à nossa segurança pessoal, um objecto que nos torna os movimentos do andar mais fluídos e descontraídos, como se andássemos normalmente; é também um instrumento que nos sinaliza como peões com necessidades específicas (os videntes podem sentir pena ou indiferença mas isso para nós é irrelevante, o importante é que compreendam que precisamos de outro tipo de consideração mais racional).
Há quem encare a bengala como uma experiência redutora da nossa imagem, mas essas representações estão muitas vezes baseadas em ideias pré-concebidas sem fundamento. A bengala é a nossa "espada" com a qual lutamos para atingirmos objectivos e sem treino e persistência nada disso é possível.
O artigo que li e que vou ler mais vezes para me deleitar mostra exactamente o que a bengala é na realidade e por isso todos deviam ler!
Foi bastante interessante, tocou todos os aspectos fundamentais e não foi preciso um testamento.
Acho que devíamos ensinar os videntes a reconhecerem a bengala a sua utilidade e potencialidade, e explicar-lhes as três perguntas essenciais para um bom conhecimento: "o quê", "como" e "porquê".
Muitas vezes as famílias (é o caso da minha) têm uma ideia pouco objectiva e pensam que a responsabilidade continua a ser sua, como se a bengala fosse um bem menor para a nossa libertação da superprotecção que, infelizmente, ainda acontece e é um entrave à nossa independência.
Eu tive aulas de orientação e mobilidade e só com a prática diária foi-me possível libetar-me dos outros para fazer os meus percursos sozinho fora de casa, com suficiente à-vontade para ir onde quero. Mas mesmo assim continuo a ser protegido, ou seja, o medo da minha família é quase irracional, é um instinto protector que ficou de tal modo activado que é impossível não sentirem medo excessivo que me aconteça algo.
Mas é verdade que a culpa não é dos outros, mas sim da falta de informação e este artigo que vou mostrar à minha família é excelente para debatermos o assunto, conhecendo melhor a bengala.

Marco Poeta

Olá Tixa!
Sou da mesma opinião que tu, que este artigo está óptimo!
Acho engraçado como aprendemos só passando pelas coisas e sentindo-as como elas são importantes para o nosso crescimento. Não quero dizer que seja tudo engraçado, mas o teu episódio foi de facto cómico. A Dona Patrícia armada em valente e catrapum! volta à Terra! lol!
Entendo que te tenha sido difícil no início, mas isso é normal, é uma fase do nosso crescimento e da nossa aceitação que é o contrário da resignação.
Acabaste por aceitar-te, não como uma pessoa limitada, mas uma pessoa consciente do seu valor e importância da tua independência.
O meu sentimento quando toquei a bengala foi de excitação de andar sozinho, porque não o conseguia e era chatíssimo depender dos outros até para ir à casa de banho!
Mas a minha família quando eu lhes mostrei a bengala não teve a reacção que eu esperava... Ficou triste e não me deu o seu contentamento, apenas a minha irmã mais nova que era apenas uma criança.
Foi uma autêntica guerra entre mim e a minha mãe, que fazia uma grande cena para eu não levar a bengala para a rua. Ela tinha imensa vergonha de admitir o que o filho era, e dizia coisas que me desanimavam, do tipo que a bengala só fazia estorvo...
Agora já a aceita melhor, mas não completamente.
As aulas de mobilidade eram feitas com um Marco um pouco nervoso e despistado, de ombros contraídos e receosos. Gradualmente, fui ganhando confiança em mim e "cagava" para o que os outros pensassem: "Lá vai o ceguinho". Porque a bengala significava para mim liberdade e eu odiava estar sempre preso a quem quer que fosse. Queria estar solto como o vento, palmilhar as ruas como Cesário Verde costumava fazer, sentar-me num morro de terra ladeado pelas árvores e pela Natureza palpitante de vida!
E tive de lutar para não chorar ao sentir-me demasiado protegido pela família que não compreendia o meu sonho de liberdade.

Marco Poeta

Olá Jorge Patrício,
Julgo que deveria indicar sempre a fonte dos textos que publica, o que só enriqueceria a informação que presta.

Este texto, em particular, "A Bengala como símbolo e auxiliar" é um texto didáctico, retirado do site "Sobre a Deficiência Visual" http://deficienciavisual.com.sapo.pt/txt-bengala.htm -
onde os seus leitores encontrarão outros igualmente interessantes.

Um abraço,
Maria José